domingo, 13 de março de 2016

Lutadora do Bellator rompeu barreira no futebol e usou luta contra estupro

Parte da nova divisão peso-mosca do evento americano, Kenya Miranda lembra carreira como árbitra e gandula, e de noite em que o taekwondo a salvou de agressão

Por Rio de Janeiro
Kenya Miranda MMA Bellator (Foto: Divulgação)Kenya Miranda tem tradição de entrar em "clubes do Bolinha" e cavar seu espaço (Foto: Divulgação)
O Dia Internacional da Mulher, celebrado na última terça-feira, enaltece a luta das mulheres por melhores condições de vida e de trabalho, e por igualdade de gênero. As artistas marciais mistas respiram essa luta todos os dias: estão num meio predominantemente masculino, no qual até pouco tempo atrás mulheres só eram aceitas como ring girls. Kenya Miranda se encaixou nesse cenário com facilidade: está acostumada a romper barreiras e atuar em áreas onde mulheres são escassas.
- É sempre assim, sempre coisa masculina: luta, só a Kenya de menina; futebol, só a Kenya de menina - conta ao Combate.com a lutadora mineira, recém-contratada pelo Bellator para integrar sua divisão peso-mosca (até 56,7kg).
A mineira de 27 anos começou sua carreira nas artes marciais bem jovem, aos 13, praticando taekwondo. Sua mãe a matriculou com duas intenções: gastar a energia que transbordava da menina - as opções "tradicionais" impostas às garotas, como balé e natação, não deram conta, e invariavelmente terminaram com ela aos prantos por fazer algo que não gostava -, e aprender defesa pessoal. A modalidade se tornou uma bênção para Kenya: além de se apaixonar e seguir carreira, que incluiu uma medalha de bronze no Pan-Americano Juvenil de 2005, a ajudou a se salvar de uma tentativa de estupro quando ainda tinha 17 anos.
Pouco depois de voltar do Pan, Kenya Miranda saía de um treino quando um homem a atacou. Com um gargalo de garrafa apontado para o pescoço, o agressor arrastou a lutadora para um posto de gasolina abandonado nas proximidades, ameaçando matá-la caso gritasse ou tentasse reagir. Quando reparou que a intenção do rapaz era estuprá-la, ela agiu por reflexo.
- Consegui tirar a mão dele do pescoço, ele meio que (se) assustou. Ele me deu vários socos, mas não acertou meu rosto, acertou o peito, machucou bastante. Ele me bateu bastante, mas não conseguiu me fazer desmaiar. Nessa de ele querer me agarrar, eu consegui o empurrar, ele se desequilibrou, caiu, e eu saí correndo. Fato é: se eu não soubesse luta, se fosse uma pessoa qualquer, ele teria efetuado o estupro - relembra Kenya.
O incidente deixou hematomas pelo corpo da lutadora, que precisou passar por tratamento psicológico para superar o trauma. Com um caso de estupro a cada 11 minutos no Brasil, de acordo com dados do 9º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Kenya Miranda acredita que a prática de artes marciais deveria ser adotada por todas as mulheres.
- É importante a mulher saber se defender, ter um reflexo qualquer, o taekwondo serviu para alguma coisa. Se fosse outra mulher, ele tinha estuprado. Como eu já mexia com luta, já tinha uma "maldade" a mais, fazia defesa pessoal desde novinha, isso me ajudou e foi importante. A mulherada tem que fazer luta e aprender a se defender. A partir do momento que ela faz uma arte marcial, aprende a se defender e a usar força, é válido. Eu tinha o taekwondo, que é só chute, mas a gente aprende outras coisas também, como qualquer arte marcial.
Kenya Miranda MMA Bellator (Foto: Arquivo Pessoal)Kenya Miranda em dois momentos: à esquerda, recebendo a medalha de bronze no Pan-Americano Juvenil; à direita, atuando como gandula em jogo de futebol (Foto: Arquivo Pessoal)
Pioneira no futebol
A luta, contudo, sairia da vida de Kenya brevemente aos 22 anos de idade. A lutadora largou o taekwondo para se dedicar à faculdade de administração, mas não conseguiu largar o esporte. Entrou em outro meio dominado por homens: o futebol. Praticamente criada no Mineirão - sua mãe trabalhava na administração do estádio - Kenya foi uma das primeiras mulheres gandulas no estado. Pouco tempo depois, decidiu ir mais à fundo e fez curso de arbitragem. Aprovada, apitou jogos na várzea e de categorias de base, incluindo partidas de Atlético-MG, Cruzeiro e Flamengo. Acabou ouvindo gracinhas de todo lado.
- Houve um tempo em que eu ficava nervosa e queria discutir. Hoje, só dou risada (risos). Não me incomoda não, agora só começo a rir. No curso de arbitragem, teve gente que levou pau na prova escrita, porque são "trocentas" regras, é chato, mas eu passei. É da capacidade de cada um. Mas é claro que há profissões que exigem muito mais da força bruta de um homem que de uma mulher, mas mesmo assim você pode encontrar uma mulher que faça um serviço tão bem feito quanto um homem - comenta.
A passagem pelo futebol, contudo, foi curta. Kenya Miranda apitou jogos por cerca de dois anos e largou a profissão - ela ainda tem o diploma, e pode retornar quando quiser. Ela encontrou o que faltava para preencher o vazio que sentia quando foi convidada por um amigo para treinar MMA. À princípio, a mineira ficou apreensiva quanto ao nível de agressividade do esporte, mas logo se apaixonou pela possibilidade de explorar novas avenidas de combate.
- É graças ao taekwondo que me deu a base para chegar onde cheguei. É um esporte olímpico, muito mais organizado, etc. Mas chegou num ponto que me senti incompleta, tanto é que eu parei. Precisava de mais. Quando cheguei ao MMA, para mim, supriu tudo, porque posso socar, chutar, vai para o chão, e taekwondo é só chute. Então o MMA supriu tudo o que eu estava buscando. Me completou - explica.
Kenya Miranda MMA Bellator (Foto: Arquivo Pessoal)Kenya Miranda finaliza uma adversária no MMA: adaptação difícil, mas que já rendeu contrato com o Bellator (Foto: Arquivo Pessoal)
A adaptação não foi fácil. Apesar do conhecimento de taekwondo, a lutadora precisou reaprender até a chutar ("Chutava para pontuar, agora tenho que chutar para machucar", comenta), e sofreu para aprender a lutar no chão. A estreia no MMA profissional veio em 2014 e, desde então, Kenya Miranda venceu duas lutas - uma por nocaute e uma por finalização - e perdeu duas. Mesmo com o pouco tempo de experiência, o Bellator acreditou no seu potencial e a contratou este ano para integrar sua nova divisão peso-mosca feminino, ao lado de Bruna Vargas e Bruna Ellen.
A estreia ainda não está marcada, mas Kenya já está se preparando para isso. Ela só espera que venha logo, para poder receber a bolsa. No momento, ela se mantém dando aulas.
- Como vim do taekwondo e lutava por clube, eu recebia salário. Se tivesse 30 lutas por mês, eu não recebia por luta, então não estou acostumada a lutar por dinheiro. Sempre lutei por amor ao esporte. Não vou dizer que não penso em dinheiro, mas todas as lutas que fiz não foram visando dinheiro, e também não ganhei dinheiro para dizer que sobrou, muito pelo contrário. Suplementação custa caro, fica elas por elas. Agora, minha esperança é esta, estar em grandes eventos e conseguir um patrocínio de verba, para não precisar dar aula, para ficar só por conta de treinos. E, mesmo estando em grandes eventos, é difícil, não está vindo nada fácil.

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