Rico faz do surfe 'remedinho', chega aos 60 anos e vai à telona em filme
Da prisão na ditadura às mais de 100 viagens ao Havaí, carioca carregou o Brasil sobre a prancha, colecionou amigos e construiu a história do esporte
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Concorra a uma prancha e a uma aula de stand up paddle
Rico era um menino do Rio, de um Leblon nobre, mas poluído - apelidado pela turma do surfe de "shit point". Magrinho, aprendeu desde cedo que era mais fácil percorrer a praia pelo mar, remando, do que carregando uma prancha de madeirite debaixo do braço. Aprendeu a consertá-las e fez disso sua profissão. Está até hoje no ofício, mas agora só fabrica para os camaradas. Fundou a primeira escola de surfe do país. Também é dono de um quiosque na Praia da Macumba, do site Rico Surf - parceiro do GLOBOESPORTE.COM -, faz boletim em uma rádio, organiza eventos e está sempre em busca de recordes. O segredo?
- Se eu não tomar meu remedinho... meu remedinho é o surfe (risos). Se não surfar, dou defeito. É como se fosse uma droga. Não bato bem quando fico um tempo sem pegar onda. Sabe quem é a única pessoa que pode dizer que você está velho? O mar. Em 30 segundos ele te dá uma coça. Idade está na cabeça e no físico.
Há 13 anos, ele mesmo viu a morte de perto. Duas vezes. Uma infecção generalizada o afastou do surfe por 12 meses. Na volta ao mar, em Sunset, no Havaí de seu coração, quase não resistiu depois de ser varrido por uma onda.
- Vi a vida toda passar. Pensei: "Poxa, passei um ano no hospital e vou morrer assim???"
Rico é um surfista boa praça, educado, atencioso, romântico. Há 25 anos casou-se com Claudia, com quem nesta terça-feira, Dia dos Namorados, deve tomar um bom vinho, única bebida alcoolica que aprecia. Os filhos, Eric (24) e Patrick (13), herdaram do pai a paixão pelo mar, pelo surfe.
Durante sua conversa com o GLOBOESPORTE.COM, recebeu telefonemas dos longboarders Phil Rajzman e de Chloé Calmon. Phil, campeão mundial, aprendeu a surfar aos 7 anos, com Rico. Chloé usa suas pranchas.
- São meus filhos... - diz, orgulhoso.
O Rico sessentão há tempos tirou o bigode, sua marca registrada por longos anos. Agora, quer trabalhar menos e viajar mais, curtir mais a família. Diz que toda pessoa tranquila, como ele, em algum momento explode. Este, para ele, é um de seus defeitos. O outro?
- Eu falo muito - ri.
PRIMEIRA PRANCHA
Eu morava no Leblon, na esquina da praia. Nunca gostei muito de futebol. Gostava de pescar e de pegar jacaré. Aos 9 anos, vi o Havaí numa revista, mostrei pro meu pai e falei: "é isso". Comecei a pegar onda com prancha de isopor, em pé. Comprei minha primeira madeirite depois de vender garrafas, tampa de leite de alumínio e chumbo de construções. O canto do Leblon era chamado de Shit Point, porque o canal trazia detritos. Minha família não aceitava que eu surfasse, que tivesse aquele lifestyle. Meu tio era presidente da Caixa Econômica. Meu pai queria que eu fosse advogado, como. Fiz direito até o sexto ano e não me arrependo.
(Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
Depois do Brasileiro de 1969, fui convidado, no ano seguinte, para ir ao Peru. Era minha primeira viagem internacional, onde teria contato com os melhores do mundo. Fui com uma prancha pequena, e o mar estava grande. Na primeira onda em Punta Roca, a prancha quebrou. Não deu nem para sentir o cheio da competição... No ano seguinte, fui para a final com os melhores do mundo. Foi especial.
PRIMEIRA DAS 108 VEZES NO HAVAÍ
A primeira vez que fui ao Havaí foi em 1972. Tinha sido campeão, mas não falava inglês, nada. Fui a um programa de TV para pedir uma passagem. O Pelé estava lá também. Eu estava com 39 de febre, mas fui e ganhei a passagem. Fui 108 vezes ao Havaí. Vou duas ou três vezes por ano. Fiz muitos amigos por lá. Sai até briga para ver onde eu vou me hospedar (risos)...
PESADELO NA CALIFÓRNIA
Antes de ir ao Havaí, fui para a Califórnia e detestei. Eu morava numa garagem, a duas horas da praia. A água era fria, eu não falava inglês. Ninguém conhecia o Brasil. Eu chegava a chorar de tristeza. Aí conheci o Randy Rarick, e ele me deu força para entrar no campeonato. Surfei com Michael Ho, conheci a galera e comecei a trabalhar fabricando prancha. Quando o pessoal foi para o Havaí, aluguei uma casa lá, ao lado de Sunset. Nas filmagens do filme, voltei lá na casa e descobri que ela é de um amigo meu.
troféus (Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
A Globo me dava passagem, suporte, e eu arrumava alguém para surfar. Sabe quem narrava os filmes que eu mandava? O Leo Batista. Fui competir no ano seguinte na África do Sul e, sem eu saber, tiraram um foto minha e usaram no pôster no mundial. Aparecia a prancha da Globo nos ônibus, carros, outdoors.
CONTRA CULTURA NA DITADURA
Foi um período ruim para toda a juventude. O surfe era contra cultura, foi o primeiro esporte a se revelar contra a sociedade, contra os militares. Ao mesmo tempo que era contra, a gente fazia coisas fora do tradicional. A gente quebrava o tabu: música, yoga, primeiro restaurante vegetariano. Era uma época de experiências. A sociedade era tão tolhida que dava vontade de fazer tudo. Como quando as meninas iam para Saquarema...(risos) era uma época de descobertas.
NA CADEIA POR... SURFAR
campeonatos (Foto: Arquivo / RicoSurf.com)
Guaratiba (Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
Nunca gostei tanto de festa, sempre fui mais do dia. Era um dos poucos caras trabalhadores. Minha liberdade vinha do meu trabalho. Trabalhava, voltava para pegar onda. Não gostava de drogas. Antigamente não era como hoje em dia, era mais experimental. No meio dessas experiências, vários amigos não tiveram sucesso... Mas vejo mais problema atualmente. Dos anos 60 aos 80, aponto menos gente se acabando do que dos anos 80 para hoje. Eu gostava de namorar. Passava nas festas e depois ia dormir cedo. Droga não bate com meu estilo de vida. Não bebo cerveja, não curto. Quando tinha 12, 13 anos, tomei um porre de uísque que hoje não consigo nem sentir o cheiro. Competi dez anos na França. Hoje adoro vinho. A curtição é a qualidade, não quantidade. Aprecio isso como se fosse minha liberdade. Sou avesso a cigarro, tenho alergia.
PERDAS NA FAMÍLIA
Quando fui campeão em Ubatuba, em 1973, meu pai (Sebastião) teve três derrames. Foi muito ruim. Eu vivia dois mundos. Passava o dia inteiro pegando onda, feliz, e ia visitá-lo no hospital e saía de lá triste, sozinho. Era a alegria do esporte e a tristeza de ver meu pai doente. Minha mãe faleceu há dez anos, e um dos meus irmãos faleceu também. É chato para qualquer um, principalmente quando você é garoto. Eu não tinha amparo de ninguém. Até hoje é triste...
para o filme (Foto: Divulgação / Sentimental eTAL)
Quando meu filho caçula tinha um mês (Patrick, de 13), estava me preparando para um Mundial aqui no Brasil e comecei a me sentir mal, com febre. Descobri que estava com diverticulite. Meu intestino estourou, tive infecção generalizada. Passei um ano sem pegar onda. Meu coração bateu a 35. Os médicos ficaram surpresos por eu não ter sequelas. Quando voltei a surfar no Havaí, havia apenas ondas pequenas no primeiro e no segundo dia. No terceiro, o mar estava grande em Sunset. Minha mulher estava na beira. Resolvi furar as ondas, em vez de usar o canal. Uma onda gigante me pegou, perdi todo o ar. Tentei subir e não consegui. vi a vida toda passar. "Poxa, passe um ano no hospital e vou morrer assim?"
AMIZADE COM FAMÍLIA AIKAU
Ganhei do Clyde Aikau uma foto do Eddie surfando Waimea Bay. É a única foto dele no Brasil. Sabia que eu dei a notícia da morte para a família, quando ele sumiu no mar? Estávamos na Austrália com todos os havaianos. Ele falou para mim: "Rico, dá uma olhada no meu irmão". Eddie resolveu voltar ao Havaí, para remar do Havaí ao Taiti, só pelas estrelas, no remo. Depois de um dia e meio de viagem, o barco virou, e ele tentou pedir socorro. Dez dias depois, eu e Clyde estávamos Bells Beach, quando bateram na nossa porta avisando. Acordei o Clyde. Imagina... Foi difícil. Eu não tinha tanta intimidade....E na época ninguém tinha dinheiro para voltar ao Havaí. Fizemos uma vaquinha, e ele devolveu tudo. A partir daí ficamos muito amigos. Clyde veio ao Brasil quando lançamos o museu do surfe. Eu não falava muito com o Eddie porque ele não era muito de falar, como eu (risos). Ficava horas e horas dentro d'água, sempre se colocando mais para fora do pico. Quando vinhas as maiores e melhores ondas, ele dropava. Fico orgulhoso por ele ter me escolhido para cuidar do irmão dele. Os havaianos têm coração muito grande.
GUGA KUERTEN E PEPÊ
Quando Guga venceu Roland Garros, liguei para a Dona Vera, mãe do Pepê. Falei para ela que via, na parte de cima do rosto do Guga, a expressão dos olhos do Pepê. Ela concordou. Ele era uma pessoa muito especial...
BRASIL CAMPEÃO MUNDIAL?
Minha vida inteira foi levada com esse objetivo de levantar a bandeira do surfe. Quarenta anos depois, vejo que estamos perto. De todas as minhas conquistas, o que mais me orgulha é ser chamado de embaixador do surfe no Brasil. Gabriel Medina, Adriano de Souza...Se eu pudesse dar uma dica? Eles têm que ficar mais tempo em ondas como Havaí e Teahupoo. Isso que vai definir o campeão.
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