Humildade e suor: receita da fábrica dos campeões de MMA de Natal
Academia Kimura / Nova União aposta na ausência de vaidade e no companheirismo para forjar talentos e descobrir futuros campeões
Por Ivan Raupp e Marcelo Russio
Natal
Se lhe for pedido para descrever a academia de uma das mais importantes
equipes de MMA do Brasil, como você começaria? Provavelmente com um
octógono, depois uma sala de musculação bem aparelhada, uma área com
sauna, piscina e banheiras térmicas e um tatame amplo, além de
ar-condicionado e muitos campeões se preparando para defender seus
cinturões. Pois bem: esqueça tudo isso, a não ser a última parte. A
academia Kimura / Nova União, de Natal, é a antítese do que foi descrito
acima. A equipe do
Combate.com esteve na sede de um
dos maiores celeiros de talentos e de campeões do MMA nacional, e
acompanhou um treino de mais de duas horas comandado pelo técnico Jair
Lourenço, e com as presenças de nada menos que dois atletas que lutarão
no UFC Natal, que acontece no próximo domingo, na capital potiguar
(Ronny Markes e
Jussier Formiga). O que foi mostrado foi uma aula de simplicidade, respeito e companheirismo.
Placa que mostra a entrada da Kimura Nova União em Natal (Foto: Rodrigo Malinverni)
A chegada já foi surpreendente. Em uma rua da região central de Natal, a
academia só pode ser vista pela presença de uma placa indicando-a. A
entrada, como todo o restante, é simples. Em uma pequena recepção, o
meio-pesado Ronny Markes, que lutará no UFC Natal, conversa com alguns
atletas e alunos enquanto assiste ao Globo Esporte em uma pequena TV
instalada na parede. A reportagem é recebida com um sorriso do lutador,
que convida todos a entrar. Seis passos depois, estamos dentro da área
de treinos.
Loja de produtos da Kimura que funciona logo na
entrada da academia (Foto: Rodrigo Malinverni)
O técnico Jair Lourenço recebe a equipe com a simpatia habitual. Deixa
todos à vontade para fotografar e observar os treinos, e apresenta boa
parte de seus alunos, exaltando as suas qualidades. Entre todos,
incluindo o campeão dos pesos-galos do UFC,
Renan Barão,
um se destaca. O jovem Chumbinho, ou Lázaro Matheus Souza Cardoso, de
apenas 15 anos de idade. Tido como uma das maiores esperanças da Kimura
Nova União, o menino treina duro com Cláudia Gadelha, lutadora do
Invicta e que busca um lugar na categoria dos pesos-palha do UFC.
Aqui é a minha casa. Eu surgi através do Jair, que é um pai para mim.
Ele me deu a oportunidade de poder estar onde estou hoje"
Renan Barão, lutador
Debaixo do teto de alumínio e com quatro ventiladores funcionando para
amenizar o forte calor, Chumbinho e mais quase 40 atletas suam e treinam
duro sob as ordens e o olhar de Jair Lourenço. Nos intervalos, o mestre
leva água aos lutadores que estão mais cansados. A ação é repetida
pelos demais, inclusive Renan Barão. Esse é, na opinião de Lourenço, o
diferencial da equipe, que foi fundada por ele em 12 de outubro de 1993 e
que, três anos depois, associou-se à equipe de André Pederneiras, a
Nova União.
- Nosso espírito aqui é de cuidar um do outro. A partir do momento que
você cuida de você e dos seus amigos, o espírito de união é muito forte.
A gente se gosta e se cuida. Não tem isso de inveja. Estrela só tem no
céu, eu sempre digo isso. Os meninos do UFC aqui limpam o tatame, levam
água, ajudam pra ninguém cair do tatame, entra no sparring contra os
mais pesados, de 90kg, pra ajudar o cara. Isso é o mais importante
daqui. Às vezes acontece de alguém se machucar, mas é muito difícil. Eu
sempre mando ter cuidado com a mão, com a rivalidade no treino, que
acontece e é até sadio que tenha, mas dentro de um limite, sem querer
machucar ou humilhar o outro. Isso aqui não existe, e se existir eu
corto. Já existiu e eu sei que ainda vai existir algumas vezes, mas
quando eu noto, eu corto o cara, baixo a bola dele, e se não funcionar,
eu mando embora. Todo mundo tem o direito de errar. Se for o caso, eu
converso, dou conselho, até suspendo. Mas se não tiver jeito, eu mando
seguir o caminho dele.
Jair Lourenço dá água a um de seus alunos no intervalo do treino na Kimura (Foto: Rodrigo Malinverni)
O tamanho da academia já não comporta tantos lutadores. O treino de
sparring - uma simulação de combate - tem que ser organizado para que
todos possam treinar. Chumbinho participa ativamente, e quando está
esperando a vez de voltar - só há lugar para quatro atletas em cada
metade do tatame - busca sentar-se ao lado de Barão, como um aprendiz.
Conversa com o ídolo, imita seus gestos e olha para onde o caampeão
olha.
Chumbinho senta-se ao lado do ídolo Renan Barão em uma pausa dos treinos (Foto: Rodrigo Malinverni)
- Meus ídolos são Anderson Silva e Renan Barão. Quando eu estou
treinando o Formiga e o Barão me ajudam muito - diz o menino, ainda
tímido. Vindo do judô e treinando há cerca de três anos na Kimura,
Chumbinho está sendo preparado para estrear no MMA no fim do ano, quando
já tiver 16 anos. Criado pela avó, que ele diz apoiar sua escolha,
apesar de temer que ele sofra alguma lesão, Lázaro imagina que ficará
nervoso na estreia, mas não nega que seu sonho é ser lutador de MMA.
Lutadores ajudam um companheiro que mostra estar
cansado durante o treino (Foto: Rodrigo Malinverni)
O treino continua, e os próprios lutadores dizem quando ficam sem
parceiro para a movimentação. Com o braço levantado, quem está sem
companhia chama a atenção, e rapidamente algum outro atleta chega para
que o treino não pare. Do lado de fora, os que estão descansando e
esperando a vez dão instruções e incentivam quem está levando a pior.
Com roupa de treino, Jair Lourenço oferece suco de uva à reportagem e
conversa animadamente enquanto dá instruções aos alunos.
A falta de espaço para que o treino tenha mais qualidade e desgaste
menos os lutadores fez com que Lourenço tomasse uma decisão: pegar um
empréstimo para comprar um terreno maior e ampliar a Kimura. Aumentar a
academia significa dar mais qualidade ao seu grupo, mas o mestre sabe
que haverá armadilhas pelo caminho.
É uma academia simples, não tão bem aparelhada, mas a gente tem o
diferencial, que são atletas com bastante disposição e força de vontade"
Jussier Formiga, lutador
- A simplicidade das pessoas eu acho que sim, é um diferencial nosso.
Se for falar da estrutura, eu queria ter algo melhor. Sempre sonhei com
isso. Daqui a trêsmeses estaremos com uma estrutura nova. Fiz um
financiamento de 40 anos para pagar... (risos). Agora vamos poder ter
uma estrutura boa, com octógono, piscina, banheira de desidratação,
sauna, preparação física, um tatame bem maior. Mas a amizade que as
pessoas têm aqui é realmente um grande diferencial. Mas a academia vai
crescer, se Deus quiser. Claro que ter muita gente na sua academia te
faz perder o contato com todos. Talvez a principal armadilha seja essa.
Quando o negócio cresce muito, fica muito solto. Você perde o contato
visual com todos, de ver o treino de perto e com atenção. Mas o que me
fez mudar mesmo é a quantidade de pessoas. Em um treino como o que nós
fizemos hoje (ontem), tinha mais de 40 pessoas treinando. O espaço ficou
pequeno. No início eu não me preocupava muito com isso, porque não
precisávamos de tanto espaço. Com 15 pessoas para lutar e 15 para ficar
no meio, aguardando, o treino acaba durando três horas. Só quatro podem
treinar, para não haver risco de choque. Com um tatame maior, com
octógono ou ringue, eu posso botar oito ou nove para lutar ao mesmo
tempo. Isso vai diminuir o tempo de treino e desgastar menos os
lutadores. Passando muito tempo na academia, com esse calor, há
desidratação e isso atrapalha o rendimento durante o dia. Quem treina
pela manhã não consegue treinar à tarde. Antigamente, com esse mesmo
espaço, a gente não tinha nem manopla. Não existia manopla em Natal. A
gente batia manopla no chinelo e batia saco. Esse era o treino. Ninguém
tinha luva de MMA, ia todo mundo na mão mesmo. Hoje já temos lojas que
vendem material em Natal e algumas empresas produzem o material. O
início foi bem precário, bem arcaico. Mas sempre tivemos força de
vontade - diz Jair Lourenço.
O treino vai chegando ao fim, e Chumbinho, como os demais lutadores, já
mostra sinais de cansaço. Enquanto os últimos sparrings são feitos,
duas alunas secam o suor do tatame, enquanto outros arrumam as áreas que
não serão mais usadas. Alguns lutadores que já terminaram seus treinos
continuam na academia, conversando uns com os outros. Enquanto falava
com a reportagem, Chumbinho era filmado e fotografado pelos mais velhos,
que brincavam que ele ficaria famoso.
Aos 15 anos, Chumbinho posa para foto. O menino é apontado como promessa (Foto: Rodrigo Malinverni)
- O apelido de Chumbinho pegou. Foi o mestre Jair Lourenço que me deu, e
todo mundo começou a me chamar assim. Eles dizem que é por causa do meu
tamanho e porque eu sou forte pra minha idade. Eu aprendi tudo que eu
sei com o mestre. Se não fosse ele me ensinar, hoje eu estaria apanhando
de todo mundo aqui (risos). Eu ainda apanho, porque eles são melhores,
mas de vez em quando eu dou um calor no pessoal(risos). É uma alegria
estar com os melhores, porque só se aprende quando se treina com alguém
melhor que você. Aqui são todos irmãos para mim, mas o treino é duro,
não tem moleza não... Me aceitaram como um irmão - brinca o menino,
ensaiando um sorriso de orgulho.
É mérito de todos, até daquele que limpa o chão, que te dá água no
intervalo do treino. É fruto dessa união que a gente tem aqui"
Ronny Markes, lutador
O sentimento de família é também uma espécie de âncora de Lourenço.
Apesar de receber inúmeras propostas para deixar o país, ele garante que
é feliz em Natal e na sua academia, e só cogitaria deixar tudo para
trás se a proposta fosse alta a ponto de não ir sozinho.
- Sou muito feliz aqui, demais. Já tive várias propostas para ir para
os EUA e Europa, mas mandei muitos no meu lugar porque não tive coragem
de ir. Eu amo muito a minha cidade. Tenho minha família e meus filhos
que eu quero que cresçam junto com a família. E eu sei que, se eu
encerrar aqui, vou acabar com o sonho de muita gente. Há mais de dez
anos eu recebo propostas, mas imagine se eu aceitasse uma que eu recebi
há seis anos, que era um valor muito alto. Se eu tivesse ido, talvez
hoje não tivvesse um Barão no UFC, um Ronny Markes ou um Formiga. Um dia
eu posso até ir embora, mas só vou se tiver uma estrutura financeira
realmente grande para eu levar pelo menos uns 15 ou 20 comigo. Tem muita
gente aqui que tem um futuro brilhante pela frente, mas que precisa de
incentivo e de ajuda. Sem a gente aqui para ajudar vai ser mais difícil.
Eu amo todos aqui de coração. Daria minha vida por um monte deles.
A equipe Kimura Nova União posa para foto após o treino da última terça-feira (Foto: Rodrigo Malinverni)
Feliz como um pai ao fim do treino de seus filhos, Jair garante que um
de seus maiores orgulhos é ver o sucesso dos seus pupilos. Especialmente
daqueles que foram desacreditados.
- Meu grande orgulho foi ver muita gente que ninguém acreditava chegar
aonde está chegando. Quando o Barão perdeu a primeira luta, não faltou
gente para me dizer que ele não tinha futuro, que amarelou, que travou.
Eu disse que era exatamente por isso que ele tinha futuro. Todos sabiam
que ele era bom, e eu disse que bastava esperar ele ter 17, 18 anos para
amadurecer e superar a derrota. Botei ele para lutar campeonato de
jiu-jítsu para ganhar ritmo de luta, que era o que faltava a ele, e
depois ele nunca mais perdeu. O Chumbinho teve muita dificuldade quando
era menorzinho. Passou fome, não cresceu muito por isso, mas hoje ele
está se desenvolvendo e é muito forte. Pega duro com os caras aqui, e o
pessoal se espanta com a força dele. Tenho certeza que ele tem um futuro
brilhante pela frente, se continuar sendo aplicado nos treinos. Ele
olha tudo, pergunta muito, está sempre querendo aprender. Isso, pra mim,
é uma satisfação.
Academia impecavelmente limpa após o treino. Ao
fundo, troféus dos alunos(Foto: Rodrigo Malinverni)
No fim do treino, por volta de 14h30m, os últimos alunos deixam a
academia. O tatame está impecavelmente limpo, não há nenhum traço de
esparadrapo no chão, tudo está impecavelmente organizado - trabalho dos
alunos, que arrumam tudo no lugar antes de irem embora. Os valores
transmitidos pelo professor são refletidos na academia. Saudado por cada
um com um cumprimento marcial - a saudação do judô - Jair Lourenço
encerra a entrevista pelo começo, contando a história da Kimura.
- Começamos a Kimura eu, Marcelo Jornal, que é um irmão nosso e que
hoje expandiu a Kimura pra Maceió, onde ele mora, Boi e Kerson Bueno.
Éramos faixas azuis de jiu-jítsu e abrimos porque não tínnhamos onde
treinar. Éramos um grupo de amigos que queria treinar todos os dias. O
que era para ser só para a gente começou a ter procura, outros amigos e
mais pessoas nos procuraram pra treinar e a coisa foi crescendo. Começou
com jiu-jítsu, mas eu já lutava MMA e outros foram começando a querer
treinar MMA também. Em 1996 nós nos unimos à Nova União através do
professor Guilherme Santos, que é um aluno antigo do Dedé Pederneiras de
Fortaleza. Eu lutei um torneio aqui, fiz três lutas na noite e ganhei
uma moto. Vendi a moto para ir ao Rio para conhecer algumas academias,
mas não me identifiquei com nenhuma delas, tinha um pessoal meio
poderoso lá. Nao curti o jeito do pessoal puxar os treinos e os atletas
também. Quando eu voltei, muito triste, o Guilherme me perguntou se eu
tinha gostado de lá e eu falei que não tinha visto nenhuma que fosse do
jeito que eu queria. Aí ele me disse: "Você não foi ao lugar certo. Me
disse para ir à academia do André Pederneiras, e que eu iria mudar a
minha opinião. Eu acreditei de cara, porque o Guilherme é como se fosse
um irmão meu. Três meses depois eu fui ao Rio com ele e conheci o Dedé, e
foi paixão mesmo, até hoje. Amo muito aquele velho (risos). Estamos
juntos até hoje, e pretendo ficar junto o resto da vida. Nós dois de
bengala e juntos (risos).
O "UFC: Shogun x Henderson 2" será realizado neste domingo, em Natal, a
partir das 17h (de Brasília). O canal Combate transmite o evento ao
vivo, e o
Combate.com acompanha tudo em Tempo Real.
UFC Fight Night no Combate: Shogun x Henderson 2
23 de março de 2014, em Natal
CARD PRINCIPAL
Peso-meio-pesado: Maurício Shogun x Dan Henderson
Peso-médio: Cezar Mutante x CB Dollaway
Peso-leve: Léo Santos x Norman Parke
Peso-meio-pesado: Fábio Maldonado x Gian Villante
Peso-leve: Michel Trator x Mairbek Taisumov
Peso-pena: Rony Jason x Steven Siler
CARD PRELIMINAR
Peso-pena: Diego Brandão x Will Chope
Peso-médio: Ronny Markes x Thiago Marreta
Peso-mosca: Jussier Formiga x Scott Jorgensen
Peso-meio-médio: Thiago Bodão x Kenny Robertson
Peso-pena: Godofredo Pepey x Noad Lahat
Peso-meio-pesado: Francimar Bodão x Hans Stringer
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