Álcool e bola: 30 anos após morte de Mané, bebida ainda estraga carreiras
O problema persiste: como o vício afeta jogadores e encurta trajetórias mesmo em tempos de profissionalismo
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Ruy Castro, autor da principal obra sobre Mané, a biografia “Estrela solitária - Um brasileiro chamado Garrincha”, diz que o álcool foi apresentado para o mito alvinegro logo na infância. A dependência só apareceu com 30 e poucos anos, quando ele já não podia viver sem a bebida. O jornalista faz um paralelo e cita outros exemplos, como Sócrates e Adriano.
- O contato de Garrincha com o álcool começou praticamente ao nascer, quando sua família o alimentava com uma mamadeira contendo cachaça, mel e canela em pau - o popular “cachimbo” dos indígenas nordestinos. Ou seja, foi estimulado desde cedo a beber e, durante muitos anos, isso não representou um problema maior. Até que, por volta dos 30 e poucos anos, seu organismo lhe apresentou a conta - Garrincha já não podia funcionar sem bebida. Chama-se a isto dependência. Garrincha era amado por um país inteiro e, principalmente, por uma mulher e, mesmo assim, bebia. Por quê? Bebia porque bebia. Porque seu organismo era feito para beber. E não só o dele, mas o do Sócrates, o do Adriano e de tantos outros menos famosos. Já os do Bebeto, do Romário e, espero, do Neymar, não são. Esses últimos fazem parte dos 85% da população que passam mal se beberem um pouquinho demais; já Garrincha, Sócrates, Adriano [e, antes deles, Veludo, Canhoteiro e muitos mais] podiam ou podem beber quantidades descomunais sem acusar muita alteração. Até, repito, a dependência se instalar. A partir daí, só tratamento com internação. Mas até hoje o Brasil é medieval nesse departamento.
- Para a Organização Mundial de Saúde, o alcoolismo é considerado doença desde 1965. Todo individuo que não para de beber quando quer e como consequência muda de comportamento, fazendo coisas que não desejava e não gostaria, é portador do alcoolismo. Ele começa no social e vai tirando do individuo sua qualidade de vida. Chega um determinado momento em que essas pessoas perdem o poder de escolha, mesmo que aleguem o contrário. O Garrincha é um exemplo que o álcool destruiu. Nesse caso, é preciso uma internação compulsória. Serão sucessivas atenções que vão quebrando as resistências. O individuo joga a toalha e depois vai agradecer.
tempos de Flamengo (Foto: Agência Estado)
- Quando resolvi procurar ajuda, meu nível de alcoolismo ainda era baixo. Eu trouxe da Europa quando voltei para o Internacional em 2008. A questão familiar também ajudou, pois meu pai faleceu devido ao alcoolismo. Foi prejudicial principalmente no estágio psicológico. O álcool me tornou uma pessoa mais fraca. Estava me separando da minha esposa, ficando longe dos meus filhos e me sentindo inseguro na minha profissão. Queria suprir essa falta de carinho e passava noites bebendo. Em 2010, cheguei para treinar no Flamengo alterado e resolvi ir embora. Minha esposa pagou um preço muito alto e foi a grande responsável pela minha melhora. Não é fácil sair sem tratamento. Essa luta não acabou, ela ainda dura 24 horas por dia. Hoje, sou um vitorioso.
Agressividade, fuga, doenças
Como aconteceu com o zagueiro, a mudança de comportamento é um dos fatores que mostram o nível de alcoolismo de uma pessoa. Segundo Sâmia Hallage, doutora em psicologia pela USP e psicóloga da seleção brasileira de vôlei de praia masculino, o consumo exagerado pode causar uma ansiedade generalizada e atrapalhar o foco no trabalho.
O atleta profissional pode se tornar mais agressivo. O consumo pode causar uma ansiedade generalizada"
Sâmia Hallage, doutora em Psicologia
Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas, o médico Joaquim Ferreira de Melo Neto alerta para o perigo de outras doenças, que podem ser relacionadas ao álcool. Além disso, diz que os atletas podem perder a capacidade normal de locomoção.
- O álcool abala o sistema nervoso e o aparelho digestivo. Quando você ingere, a bebida é absorvida no intestino e vai para o fígado. Ao metabolizar, uma parte é mantida no organismo. O uso abusivo abala a capacidade motora, de raciocínio e pode levar a diversas doenças. Demência alcoólica, hepatite alcoólica, cirrose e problemas cardiovasculares, por exemplo. Os dependentes perdem a capacidade de concentração. Aos poucos o fígado fica prejudicado e não vai conseguindo trabalhar. A pessoa começa a perder a capacidade normal de locomoção, as ações do cérebro ficam mais lentas.
Ídolo do Corinthians, Sócrates, que também era médico, cansou de falar publicamente sobre o assunto. Porém, em uma entrevista ao programa "Mais Você", da TV Globo, na manhã do dia 26 de setembro de 2011, ele afirmou que isso não chegou a prejudicar sua carreira. O ex-jogador morreu no dia 4 de dezembro, vítima de infecção generalizada de origem intestinal.
(Foto: Marcos Guerra/Globoesporte.com)
Jogadores internacionais também ficaram marcados pela doença. O argentino Ortega, por exemplo, revelou em 2008 ter problemas com álcool, que prejudicou sua carreira e a permanência no River Plate. Ele se aposentou no ano passado, aos 38 anos, quando atuava no modesto Defensores de Belgrano, da terceira divisão argentina. Na Inglaterra, o polêmico Paul Gascoigne chegou a dizer que tomou quatro garrafas de uísque por dia durante três meses para contrabalancear o efeito das drogas.
Ruy Castro lembra que o envolvimento com o álcool envolve forte componente social. O alcoólatra não é visto como uma pessoa doente. Isso distancia a possibilidade de tratamento.
- Até hoje, o alcoólatra é considerado um vagabundo, um sem-vergonha, não um doente. Ou seja, há um estigma moral. É por isso que as pessoas não se importam de se dizer cardíacas, diabéticas ou até cancerosas, mas, alcoólatras, jamais. Eu, que deixei de beber há 25 anos, sou o único alcoólatra que conheço e que se diz alcoólatra... Sim, porque, assim como na diabetes o diabético não deixa de ser diabético - apenas deixa de comer açúcar -, o alcoólatra também não passa a ser ex-alcoólatra porque deixou de beber. Ele apenas deixa de beber - conclui o escritor.
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