Amor, fé e alegria: como o Raja Casablanca chegou à final do Mundial
Com
torcida apaixonada, treinador milagreiro e enorme festa, clube
marroquino quebra barreiras e surpreende o mundo ao ir à decisão contra o
Bayern de Munique
Por Alexandre AlliattiDireto de Marrakesh, Marrocos
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Comemoração com a bandeira do Marrocos virou marca registrada da equipe (Foto: AFP)
Primeiro, a dúvida era se o Monterrey, lá nas quartas de final, enfrentaria o
Auckland
City, da Nova Zelândia, ou esse tal de Raja Casablanca, clube que só
foi ao Mundial por ser do país onde se realiza o torneio.
Deu Raja.
Depois, a questão passou a ser outra: o adversário do Atlético nas semifinais
seria mesmo o time mexicano, enorme favorito, ou poderia acontecer de os
marroquinos ganharem.
Deu Raja.
Aí a dúvida passou a ser outra: já era certo ou poderia haver dúvidas de que o
Atlético passaria à final do Mundial para duelar com o
Bayern de Munique, no sábado, em Marrakesh.
E deu Raja.
Com amor, fé e muita, mas muita festa, o surpreendente time de Casablanca se
tornou a sensação deste
Mundial de Clubes. A trajetória de três vitórias em
três jogos mostra ainda um time de futebol crescente, sustentado em um elenco
extremamente humilde e que vive momento de encanto – mesmo que jogadores
enfrentem até o drama de uma guerra civil em seu país. A isso, soma-se o
inexplicável: um treinador que acabou de chegar e já fez o time jogar.
O amor: uma torcida apaixonada
A estreia do Raja Casablanca no Mundial serviu para já mostrar ao mundo um de
seus grandes protagonistas: a torcida. Mais do que as qualidades do time que
depois atropelaria o Galo, a vitória por 2 a 1 sobre o Auckland, com gol no
último minuto, apresentou uma massa apaixonada pelo clube, capaz de fazer
frente aos brasileiros mais vibrantes.
A torcida do Raja foi eleita a quarta mais fanática do mundo pela revista
francesa “So Foot”. A presença dela nos estádios, especialmente nos dois
primeiros jogos, em Agadir, foi de impressionar. Pela força e pelas
peculiaridades. Até jogral ela faz. Cada parte do estádio entoa uma parte da
canção, que mais parece uma reza, enquanto os demais silenciam. Aí chega um
momento em que todos passam a pular e gritar juntos.
Mosaico da torcida do Raja Casablanca, que se tornou uma das atrações do Mundial de Clubes (Foto: Victor Canedo)
Boa parte da torcida organizada fica sem camisa, seja qual for a temperatura.
Em um momento do jogo, os torcedores ficam cantando de costas para o campo,
como que a dizer que sua paixão independe da partida. Fazem mosaicos e puxam
olas. Vaiam o adversário com muita força.
Antes e depois dos jogos, eles surtam. Cabe lembrar que o Raja, como diz o
complemento de seu nome, é de Casablanca. São mandantes do Mundial como país,
não como cidade. Nos três jogos do clube no Mundial, os torcedores caíram na
estrada até Agadir (cinco horas de deslocamento) ou Marrakesh (duas horas e
meia). Eles costumam colocar bandeiras nos carros e, mais perto do estádio,
subir neles ou colocar o corpo para fora das janelas – mesmo os motoristas. Depois das partidas, festejam madrugada
adentro. Têm cânticos em espanhol.
A fé
O Raja Casablanca é um gigante no Marrocos. Tem 17 títulos nacionais e nove
conquistas internacionais. Mas vinha mal no campeonato atual. Decidiu trocar
seu treinador às vésperas do Mundial. Faouzi Benzarti, um tunisiano de 63 anos,
ex-jogador, foi o convidado. Não poderia ter dado mais certo. Ele chegou no
início de dezembro, a uma semana do torneio, e fez história com seus
comandados.
Faouzi Benzarti assumiu o Raja pouco antes do início do Mundial (Foto: AP)
É um sujeito tranquilo, de fala baixa, quase inaudível. Caminha devagar, com um
sorriso leve no rosto, e cumprimenta as pessoas com um aceno de cabeça. Ganhou
seus jogadores muito mais no papo do que nos treinamentos.
- Confio muito nos meus jogadores. Eles são bons taticamente, tecnicamente,
fisicamente. E têm muita força mental. É disso que mais precisamos: de força
mental – diz ele.
O grupo marroquino se fechou ao perceber que um sonho poderia ser alcançado.
Benzarti foi decisivo nisso.
- Não havia tempo. Ele chegou quase ao começar a competição. Temos bons
jogadores, e ele trouxe coisas novas no aspecto mental. É uma equipe combativa,
como vimos na prorrogação contra o Monterrey – comenta o meia Kokou Guehi, um
dos destaques da equipe.
A fé dos jogadores do Raja depois de um gol diante do Atlético (Foto: Reuters)
Acabou que o Raja, total azarão do torneio, foi crescendo. Primeiro, contra o
Auckland, mostrou que não era bobo; depois, diante do Monterrey, apresentou sua
força mental, com vitória na prorrogação; por fim, frente ao Atlético,
escancarou sua qualidade. Foi envolvente, veloz, guerreiro.
- Nós fomos muito bem. Fizemos três gols e poderíamos ter feito outros.
Seguimos à risca o que o treinador nos pediu na parte tática. Sabemos que é uma
surpresa estarmos na final, mas nosso segredo é a solidariedade, a força do
grupo. Nós decidimos que iríamos fazer uma grande parte e fomos muito
solidários uns com os outros – comentou Mabide, autor do terceiro gol contra o
Galo.
Sabemos que é uma
surpresa estarmos na final, mas nosso segredo é a solidariedade, a força do
grupo. Nós decidimos que iríamos fazer uma grande parte e fomos muito
solidários uns com os outros
Vivien Mabide
Vivien Mabide, aliás, é um caso à parte neste Mundial. O jogador vai com o Raja
Casablanca à final enquanto vive um drama em seu país. É da República
Centro-Africana, nação que vive descompasso político, com uma guerra civil que
arrefece e se intensifica de tempos em tempos. Seus familiares, incluindo seu
pais, moram em um campo de refugiados. Não podem voltar para casa.
- Jogo por eles. Sei que eles assistem a meus jogos em meu país e faço de tudo
para dar essa alegria a eles.
A alegria
O Raja tem um elenco humilde, com jogadores entre 20 e 30 anos que têm certo
reconhecimento no país, mas que não conseguiram realizar o sonho africano de
migrar para a Europa e ganhar fama e dinheiro lá. O time conta com atletas de
visível qualidade, caso de Mohsine Moutouali, camisa 5, meio-campo de 27 anos,
extremamente habilidoso, ótimo em dribles curtos e lançamentos às costas da
zaga. Outro destaque é o atacante Moucine Iajour, 28 anos, que infernizou o
Atlético. Chegou a jogar na Suíça e na Bélgica, mas retornou ao Marrocos e
depois ao Raja Casablanca, onde foi formado.
Mas o que chama a atenção mesmo é a enorme alegria dos atletas, uma felicidade
quase infantil por estar em Mundial de Clubes. Depois da vitória sobre o
Monterrey, eles deram volta olímpica no gramado do estádio de Agadir. O
goleiro, Askri, arremessou sua camisa para torcedores e saiu em disparada,
empunhando uma bandeira de Marrocos.
Depois, eles foram para o ônibus, onde
cantaram, dançaram e pularam como se fossem torcedores
(assista ao vídeo acima).
A explosão maior foi contra o Atlético. Mais uma vez, eles enlouqueceram. Deram
outra volta olímpica. Mas, antes disso, quase desnudaram Ronaldinho Gaúcho
dentro de campo.
Agarraram o brasileiro e levaram camisa e chuteiras dele,
enquanto o abraçavam, beijavam e diziam palavras de agradecimento. São fãs dele
desde jovens, alguns desde crianças. Realizaram um sonho ao jogar contra ele. E
vencê-lo.
Guehi e Mabide ficaram com os troféus. Cada um guardou uma chuteira, e Mabide
conseguiu pegar a camisa. Detalhe: pegou justamente para presentear Guehi com
ela. Eles dividem quarto. Têm uma amizade comovente.
- Pedi a camisa ao Ronaldinho, e ele disse que seria um prazer. Queria dar de
presente a meu querido irmão, Kokou – disse Mabide.
Mabide (E) e Guehi pegaram as chuteiras de Ronaldinho depois da vitória sobre o Atlético (Foto: Alexandre Lozett)
O mais curioso é que
Mabide havia criticado Ronaldinho depois do jogo contra o
Monterrey. Disse que o brasileiro não é o mesmo, que hoje joga no nome.
O
camisa 10 reagiu. “Vamos jogar”, convidou. E foi derrotado por um atleta que
não tinha nada de marrento, nada de presunçoso, como chegou a parecer – que, na
verdade, era um fã incondicional do brasileiro.
Confio muito nos meus jogadores. Eles são bons taticamente, tecnicamente,
fisicamente. E têm muita força mental. É disso que mais precisamos: de força
mental
Faouzi Benzarti
Os dois jogadores guardam em seu quarto do hotel os presentes que ganharam, ou
quase arrancaram, de Ronaldinho. Pretendem fazer quadros com eles. Dizem que
contarão a seus filhos que um dia dividiram o mesmo campo de futebol com o
brasileiro.
E agora enfrentam o Bayern em busca de um sonho ainda maior. Eles acreditam que
podem, sim, ser campeões do mundo. Mesmo que o passado recente contra europeus
seja pouco animador. Em julho do ano passado, enfrentaram o Barcelona em
partida amistosa. E levaram 8 a 0.
Raja Casablanca e Bayern de Munique se enfrentam às 17h30m (de Brasília) deste
sábado. Antes, às 14h30m, o Atlético decide com o Guangzhou Evergrande, da
China, o terceiro lugar.