Da surra na rua ao cinturão: conheça o caminho de Werdum antes da fama
Irmão
e primeiro treinador relatam ao GloboEsporte.com a trajetória do
campeão interino dos peso-pesados no UFC no jiu-jítsu e no mundo das
lutas
Por GloboEsporte.comPorto Alegre
Quando
aprimorou os golpes de judô que aprendera com seus irmãos, no começo do
século passado para chegar à técnica da alavanca e, assim iniciar a
tradição do jiu-jítsu brasileiro, Hélio Gracie buscava dar força para os
“mais fracos enfrentarem os mais fortes”. Não imaginava que a arte que
difundira ao longo de seus 91 anos de vida, findados em janeiro de 2009,
viessem a calhar para dar rumo à vida de um então jovem de 17 anos, que
costumava escapar das aulas para “aprontar” pelas ruas de Porto Alegre.
E que superou, à base de muita dedicação no tatame, um passado de
desleixo para conquistar o cinturão dos peso-pesados do UFC no último
dia 16
(veja no vídeo ao lado).
Fabrício
Werdum desfrutava do conforto proporcionado pela mãe, Célia Silveira,
que reside em Madrid, capital da Espanha, há quase 30 anos, para viver
com liberdade a adolescência na capital gaúcha - morava sozinho com os
irmãos sob os cuidados de uma emprega. Aproveitava a vida confortável
longe do olho protetor da mãe para fazer “bagunça” e “coisas de guri”
pelas vias da cidade, sem demonstrar muito comprometimento com as
tarefas escolares. Encontrou no jiu-jítsu o foco e a motivação de que
precisava para mergulhar em um universo que o cativasse. E graças a uma
surra que levara em uma de suas andanças. Muito antes de nocautear Mark
Hunt na Cidade do México, o gaúcho foi quem saiu derrotado em um embate
com o ex-namorado de sua então namorada.
- Ele tinha uma
namorada na adolescência. Quando ele começou a namorar com ela, o ex
ainda tinha muita influência, tinha uma amizade com a família dele. Aí, o
cara convidou ele para fazer um “rola”. O Fabrício não sabia que ele
lutava jiu-jítsu e, como sempre foi muito autoconfiante e grandão, foi
para cima do cara, que logo deu dois triângulos nele. Foi uma surra.
Isso instigou ele a fazer jiu-jítsu. Hoje tu vê, ele ganhou do Feder
(Emelianenko) no triângulo. Ele ainda tinha de aguentar o cara, na
frente de todo mundo. Foi dessa surra que tudo começou - revela Felipe
Silveira, irmão e integrante da equipe, em entrevista ao
GloboEsporte.com.
À esquerda, Fabrício Werdum é arremessado pelo mestre, no início da trajetória no jiu-jítsu(Foto: Arquivo Pessoal)
A
revanche diante do algoz na adolescência ficou apenas na promessa.
Pouco importa. Quase 20 anos mais tarde, se transformou em uma lembrança
remota do passado. Também pudera. Vieram títulos mundiais de jiu-jítsu,
a marca de ser o único lutador da história a finalizar os mitos Fedor
Emelianenko e Rodrigo Minotauro, e o recente cinturão interino. Além da
gratidão que demonstra até hoje ao primeiro treinador, Marcio Corleta,
dono de uma academia em Porto Alegre, expressa por uma mensagem de áudio
no celular, mesmo diante da relação mais distante entre a dupla
atualmente
- Tu vê, foi só falar do cara, que ele aparece. O
Fabrício acabou de me agradecer aqui, algo que eu sempre enchia muito o
saco dele, para ele trabalhar, que são as técnicas de defesa pessoal.
Ele disse que foi nisso que levou vantagem sobre o Mark Hunt - afirma o
treinador.
Primeiro treinador, Marcio Corleta recebe a gratidão de Werdum (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)
Como
o início no mundo das lutas já indica, a trajetória de “Vai, Cavalo!”
até colher os frutos de suas vitórias no octógono não se desenhou com
facilidade. Sem contar com o apreço inicial da mãe, encontrou no apoio
de Corleta as condições para disputar as primeiras competições da
carreira.
- Ele não tinha muito apoio, muita grana para
investir e bancar as viagens. Eu só exigia dele que chegasse no horário e
se dedicasse ao máximo nos treinamentos. A gente fazia um esforço para
que ele fosse aos campeonatos e aos acampamentos de treino, realizados
no Rio de Janeiro. Às vezes, eu acabava bancando, às vezes íamos de
carro - relata Corleta.
E Werdum soube retribuir. Trocou os
tempos de “maloqueiro” pela dedicação nos treinamentos do novo esporte
e, em pouco tempo, já começou a ver florescer os primeiros louros do
esforço para aprender as técnicas do jiu-jítsu.
- Ele soube
aproveitar. Aprendeu e evoluiu muito de acordo com o método de ensino.
Chegou à faixa preta em cinco anos. Ganhou dois mundiais nas faixas azul
e na roxa. Não venceu na marrom, mas pegou a preta e ganhou o mundial. É
um cara que corria atrás. Sabia o que queria e onde queria chegar. Eu
brinco que ele é ex-maloqueiro, mas, apesar da malandragem, sempre teve
uma boa índole - analisa Corleta.
Primeiro treinador, Marcio Corleta relembra o início da trajetória de Werdum (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)
"Bicos" na Europa para bancar início da carreira
A
distância e as saudades da mãe levaram Werdum a se mudar para Madri.
Mas não o fizeram desistir do jiu-jítsu. Fabrício morou na capital
espanhola durante seis anos. Por lá, procurava dar aulas em uma academia
para se manter ligado ao esporte. Também complementava a renda para
custear as viagens ao Rio de Janeiro para disputar os campeonatos da
modalidade com “bicos” em empregos temporários.
Antes de se
firmar como um dos principais nomes da luta, o gaúcho trabalhou como
segurança de boate e na carga de equipamentos para shows e espetáculos
na Europa. O ingresso no MMA foi quase por acaso, depois de um convite
de um aluno para um combate em Londres.
- Ele não tinha noção
nenhuma de boxe, na época só treinava jiu-jítsu. Era fã do Wanderlei
SIlva e do Minotauro e ficava instigado para provar esse “tal de
vale-tudo”. Estava com aquilo na cabeça de provar. Pintou a
oportunidade, a gente foi para Londres sem receber para isso. O Fabrício
acabou ganhando duas lutas e, a partir disso, engrenou - relata Felipe.
Ex-treinador e irmão contam início da trajetória de Fabrício Werdum (Foto: Editoria de arte)
O
início vitorioso surtiria boas consequências. Werdum sairia “do nada”
para bater Tom Eriksson em sua estreia no Pride, diante de 40 mil
pessoas, em 2005. No mesmo período, treinou por dois anos com Mirko
Filipovic, o Cro Cop, na Croácia, experiência tida como vital na
evolução do Cavalo no mundo das lutas.
- Foi o nosso primeiro
contato com uma pessoa 100% profissional. Ele mostrou como seria um
profissional. Considero um dos melhores que já conheci. Ele tinha toda
uma estrutura voltada para ele. Treinava embaixo da casa, em um espaço
de 300 metros quadrados. Descia uma escada, treinava e voltava. Era
muito focado. Foi uma pessoa muito inspiradora - pondera Felipe.
Felipe acompanhou toda a carreira do irmão, Fabrício(Foto: Reprodução/Instagram)
Aos
poucos, Werdum foi consolidando seu nome em competições como o Pride e o
Strikeforce e conquistando o apoio da mãe. À medida em que o
profissionalismo rendia frutos, dona Célia se rendeu à paixão do filho
pelo esporte, a ponto de se tornar a "fã número 1" do lutador.
-
No começo, era totalmente contra, depois com o tempo, viu o
profissionalismo, viu o Fabrício ganhar um monte de campeonatos na
carreira. Foi aceitando e acabou admirando, inclusive, a modalidade -
afirma Felipe.
Werdum teve uma breve passagem pelo UFC em
2007, mas acabou deixando o cartel de lutadores da organização ao ser
nocauteado por Junior Cigano. Mas para um lutador predestinado, até uma
derrota dolorosa renderia glórias no futuro, no Strikeforce.
Triunfo sobre mito é comparado à conquista do cinturão
Algoz, Werdum reencotnra mito do MMA em Porto Alegre(Foto: Arquivo Pessoal)
Posicionado
no posto mais alto da trajetória de conquistas do Cavalo no MMA, o
almejado cinturão interino dos peso-pesados no UFC divide espaço com
outra importante vitória no cartel do gaúcho. Em 2010, Werdum foi o
primeiro lutador a bater o mito da categoria, Fedor Emelianenko pelo
Strikeforce, quebrando uma hegemonia de mais de uma década. E em apenas
dois minutos de luta, no primeiro round, por uma finalização. Como não
podia ser diferente, o irmão, que o acompanhou ao longo de toda a
trajetória, teve papel fundamental no triunfo.
- A gente viu
duas vitórias do Fedor contra o Minotauro, e eu comentei com o Fabrício:
“Pô, se ele entrar na tua guarda desse jeito, tu pega ele fácil”. Falei
com fé, mas era só um comentário. Papo de irmão. Quando pintou a
oportunidade, todo mundo pensou que ele ia tomar uma surra. Foi muito
impactante. A gente era fãs do cara e ver o cara do outro lado,
encarando…Vai lutar com o “monstro”. E de repente, em menos de dois
minutos, o Fabrício pega ele e finaliza e bate aquele espanto. O
cinturão tem muito valor, mas, até hoje, essa conquista foi a maior -
analisa Felipe.
O triunfo diante do mito russo e a trajetória
vitoriosa no Strikeforce o colocaram no caminho da academia Chute Boxe,
por onde já passaram Anderson Silva, Maurício Shogun e Vanderlei Silva,
para aprimorar o Muay Thai eo Thai Boxe. Também o credenciaram a um
retorno ao UFC, concretizado em fevereiro de 2012. A partir de então,
Werdum superou obstáculo atrás de obstáculo para chegar ao cinturão.
Técnico do The Ultimate Fighter Brasil, bateu até mesmo o ídolo Rodrigo
Minotauyro, em 2013, ao finalizá-lo no segundo round.
Férias com a cabeça em Cain Velázquez
Dois meses recluso em preparação intensiva, alternada na altitude de Nevado de Toluca e de Jiquipilco, no México -
com direito a susto e quase morte por intoxicação.
Sofrimento diante da mão pesada de Mark Hunt e superação para se
recuperar na luta e levar o adversário ao chão no UFC 180, na Cidade do
México. Emoção e felicidade ao vestir o cinturão interino dos
pesos-pesados. Passada a epopeia pelo título interino, é de se imaginar
que Werdum não almeje nada além do carinho da família para saborear dos
louros da conquista.
Werdum posa ao lado da equipe, durante o período de treinamento no México (Foto: Reprodução/Instagram)
De
volta a Los Angeles, onde reside e é dono de uma academia própria, após
o combate, o gaúcho aproveitou a semana de folga para relaxar ao lado
da esposa, Carina, das filhas, Joana e Julia, e do irmão, Felipe. A
trupe aguardava apenas a chegada da mãe, Célia Silveira, desde Madri,
para embarcar rumo a São Francisco, no último sábado, e desfrutar de uma
merecida semana de férias.
- A Califórnia é muito boa. Temos
nossa academia aqui, nosso centro de treinamentos. Gostamos de viajar
bastante. Damos alguns tiros, nos estandes. Vamos para praia. Gostamos
muito de programas familiares e de viajar, visitar. Vamos bastante aos
parques naturais que têm pela região - relata Felipe Werdum.
Mas
o descanso tem lá suas ressalvas. Ainda com as memórias pela conquista
recente ainda vivas, os Werdum já começam a planejar os treinamentos
para dar o passo definitivo na história do UFC. Buscam assegurar a mesma
logística que dera certo diante de Hunt para superar Cain Velázquez na
luta pela unificação do cinturão.
- A gente saiu de férias,
mas estamos pensando na luta. O Fabrício vai lutar com o Velázquez. Só
aguardamos o local da luta para definir o treinamento. Se for no México,
ou nos Estados Unidos, vamos fazer o mesmo "camp" de trabalhos. Se deu
certo uma vez, vai dar certo na outra - projeta Felipe.
Werdum aproveita período de férias ao lado da família, na Califórnia (Foto: Editoria de arte)
De
acordo com o presidente da organização, Dana White, o embate deve
ocorrer em 13 de julho de 2015, no UFC 188, na Cidade do México,
território do rival, americano com raízes mexicanas. Pois é justamente
do apreço pela terra natal, o Rio Grande do Sul, que Fabrício encontra a
força para derrotar o adversário e vestir o cinturão definitivo, com
direito a um desejo especial, que beira o sonho: lutar na Arena do
Grêmio, clube do coração.
- Desde pequeno, o Fabrício sempre
foi autoconfiante. Até mesmo antes de fazer luta. Sempre senti isso
muito forte. Não tenho dúvidas. Ele nunca teve dúvidas. Se pudesse ser
na Arena, a gente ia lotar aquele estádio de gremistas, de colorados,
de gaúchos. Ia ser impossível perder o cinturão. A gente tem muito
orgulho de ser gaúcho, de ser do Sul. A nossa força vem da terra -
ressalta o irmão, Felipe.