Álcool e bola: 30 anos após morte de Mané, bebida ainda estraga carreiras
O problema persiste: como o vício afeta jogadores e encurta trajetórias mesmo em tempos de profissionalismo
Por Felippe Costa
Rio de Janeiro
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Completam-se neste domingo 30 anos do adeus a um dos maiores jogadores
da história. Gênio e imprevisível, Garrincha encantou o mundo com seus
dribles desconcertantes e a maneira simples de encarar os oponentes, que
eram chamados por ele de “João”. Porém, não foi capaz de enfrentar seu
maior adversário: o alcoolismo. Assim, no dia 20 de janeiro de 1983, o
ídolo do Botafogo e campeão das Copas do Mundo de 1958 e 1962 faleceu no
Rio de Janeiro, com apenas 49 anos, por consequência de uma cirrose
hepática
(relembre no vídeo). O aniversário de morte do
craque traz à tona um assunto com o qual o futebol convive há décadas -
e que ainda prejudica o rendimento de jogadores, a ponto de arruinar
carreiras.
Ruy Castro, autor da principal obra sobre Mané, a biografia “Estrela
solitária - Um brasileiro chamado Garrincha”, diz que o álcool foi
apresentado para o mito alvinegro logo na infância. A dependência só
apareceu com 30 e poucos anos, quando ele já não podia viver sem a
bebida. O jornalista faz um paralelo e cita outros exemplos, como
Sócrates e Adriano.
- O contato de Garrincha com o álcool começou praticamente ao nascer,
quando sua família o alimentava com uma mamadeira contendo cachaça, mel e
canela em pau - o popular “cachimbo” dos indígenas nordestinos. Ou
seja, foi estimulado desde cedo a beber e, durante muitos anos, isso não
representou um problema maior. Até que, por volta dos 30 e poucos anos,
seu organismo lhe apresentou a conta - Garrincha já não podia funcionar
sem bebida. Chama-se a isto dependência. Garrincha era amado por um
país inteiro e, principalmente, por uma mulher e, mesmo assim, bebia.
Por quê? Bebia porque bebia. Porque seu organismo era feito para beber. E
não só o dele, mas o do Sócrates, o do Adriano e de tantos outros menos
famosos. Já os do Bebeto, do Romário e, espero, do Neymar, não são.
Esses últimos fazem parte dos 85% da população que passam mal se beberem
um pouquinho demais; já Garrincha, Sócrates, Adriano [e, antes deles,
Veludo, Canhoteiro e muitos mais] podiam ou podem beber quantidades
descomunais sem acusar muita alteração. Até, repito, a dependência se
instalar. A partir daí, só tratamento com internação. Mas até hoje o
Brasil é medieval nesse departamento.
Garrincha com a seleção brasileira: álcool impediu carreira mais longa (Foto: Ag. Estado)
Considerado uma doença, o alcoolismo está relacionado ao consumo
excessivo e prolongado do álcool. Uma das características mais
importantes é a negação de sua existência por parte do usuário. Raros
são aqueles que reconhecem o uso abusivo de bebidas, passo considerado
essencial para livrarem-se da dependência, conforme alerta o médico
Oscar Cox, membro do Conselho Municipal Antidrogas do Rio de Janeiro.
- Para a Organização Mundial de Saúde, o alcoolismo é considerado
doença desde 1965. Todo individuo que não para de beber quando quer e
como consequência muda de comportamento, fazendo coisas que não desejava
e não gostaria, é portador do alcoolismo. Ele começa no social e vai
tirando do individuo sua qualidade de vida. Chega um determinado momento
em que essas pessoas perdem o poder de escolha, mesmo que aleguem o
contrário. O Garrincha é um exemplo que o álcool destruiu. Nesse caso, é
preciso uma internação compulsória. Serão sucessivas atenções que vão
quebrando as resistências. O individuo joga a toalha e depois vai
agradecer.
Álvaro admite: chegou para treinar alterado nos
tempos de Flamengo (Foto: Agência Estado)
Além de ser um grande problema para os familiares, o álcool interfere
diretamente na vida profissional das pessoas. No futebol, muitos
jogadores reconheceram que o consumo exagerado acabou sendo prejudicial
no rendimento dentro de campo. O zagueiro Álvaro, que teve passagens por
São Paulo, Flamengo, Internacional e hoje atua no Linense-SP, lembrou
de momentos complicados. Segundo ele, a luta ainda continua.
- Quando resolvi procurar ajuda, meu nível de alcoolismo ainda era
baixo. Eu trouxe da Europa quando voltei para o Internacional em 2008. A
questão familiar também ajudou, pois meu pai faleceu devido ao
alcoolismo. Foi prejudicial principalmente no estágio psicológico. O
álcool me tornou uma pessoa mais fraca. Estava me separando da minha
esposa, ficando longe dos meus filhos e me sentindo inseguro na minha
profissão. Queria suprir essa falta de carinho e passava noites bebendo.
Em 2010, cheguei para treinar no Flamengo alterado e resolvi ir embora.
Minha esposa pagou um preço muito alto e foi a grande responsável pela
minha melhora. Não é fácil sair sem tratamento. Essa luta não acabou,
ela ainda dura 24 horas por dia. Hoje, sou um vitorioso.
Agressividade, fuga, doenças
Como aconteceu com o zagueiro, a mudança de comportamento é um dos
fatores que mostram o nível de alcoolismo de uma pessoa. Segundo Sâmia
Hallage, doutora em psicologia pela USP e psicóloga da seleção
brasileira de vôlei de praia masculino, o consumo exagerado pode causar
uma ansiedade generalizada e atrapalhar o foco no trabalho.
O atleta profissional pode se tornar mais agressivo. O consumo pode causar uma ansiedade generalizada"
Sâmia Hallage, doutora em Psicologia
- O álcool vai agir no sistema nervoso central e fazer com que esse
indivíduo fique dependente. É uma droga social. Às vezes, a pessoa bebe
para acabar com a timidez e causa euforia. Esses exageros também são
muitas vezes para se livrar de um problema como ausência da família, uma
briga com o namorado, mas quando passa o efeito do álcool o problema
volta. O atleta profissional, por exemplo, pode se tornar mais
agressivo. O consumo pode causar uma ansiedade generalizada. O álcool
prejudica o rendimento físico e vai mudar o comportamento. Quando a
pessoa fica viciada em alguma coisa, ela se prende ao vício e esquece
das outras obrigações. A vida de atleta é muito complicada e
desgastante. Nesse sentido, a bebida pode servir como uma fuga.
Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras
Drogas, o médico Joaquim Ferreira de Melo Neto alerta para o perigo de
outras doenças, que podem ser relacionadas ao álcool. Além disso, diz
que os atletas podem perder a capacidade normal de locomoção.
- O álcool abala o sistema nervoso e o aparelho digestivo. Quando você
ingere, a bebida é absorvida no intestino e vai para o fígado. Ao
metabolizar, uma parte é mantida no organismo. O uso abusivo abala a
capacidade motora, de raciocínio e pode levar a diversas doenças.
Demência alcoólica, hepatite alcoólica, cirrose e problemas
cardiovasculares, por exemplo. Os dependentes perdem a capacidade de
concentração. Aos poucos o fígado fica prejudicado e não vai conseguindo
trabalhar. A pessoa começa a perder a capacidade normal de locomoção,
as ações do cérebro ficam mais lentas.
Ídolo do Corinthians, Sócrates, que também era médico, cansou de falar
publicamente sobre o assunto. Porém, em uma entrevista ao programa "Mais
Você", da TV Globo, na manhã do dia 26 de setembro de 2011, ele afirmou
que isso não chegou a prejudicar sua carreira. O ex-jogador morreu no
dia 4 de dezembro, vítima de infecção generalizada de origem intestinal.
Sócrates foi mais um craque vitimado pelo álcool
(Foto: Marcos Guerra/Globoesporte.com)
- O uso do álcool não afetou a minha carreira. Até mesmo porque eu
nunca tive uma estrutura física para jogar futebol. Se eu fosse um
atleta de verdade, aí, sim, teria alguma limitação. Mas como eu já não
tinha uma condição física, então não prejudicou muita coisa.
Comportamentalmente o álcool é importante para mim, talvez pela minha
timidez. O álcool era um companheiro para mim.
Jogadores internacionais também ficaram marcados pela doença. O
argentino Ortega, por exemplo, revelou em 2008 ter problemas com álcool,
que prejudicou sua carreira e a permanência no River Plate. Ele se
aposentou no ano passado, aos 38 anos, quando atuava no modesto
Defensores de Belgrano, da terceira divisão argentina. Na Inglaterra, o
polêmico Paul Gascoigne chegou a dizer que tomou quatro garrafas de
uísque por dia durante três meses para contrabalancear o efeito das
drogas.
Ruy Castro lembra que o envolvimento com o álcool envolve forte
componente social. O alcoólatra não é visto como uma pessoa doente. Isso
distancia a possibilidade de tratamento.
- Até hoje, o alcoólatra é considerado um vagabundo, um sem-vergonha,
não um doente. Ou seja, há um estigma moral. É por isso que as pessoas
não se importam de se dizer cardíacas, diabéticas ou até cancerosas,
mas, alcoólatras, jamais. Eu, que deixei de beber há 25 anos, sou o
único alcoólatra que conheço e que se diz alcoólatra... Sim, porque,
assim como na diabetes o diabético não deixa de ser diabético - apenas
deixa de comer açúcar -, o alcoólatra também não passa a ser
ex-alcoólatra porque deixou de beber. Ele apenas deixa de beber -
conclui o escritor.