De jogador preso a torturador: quando ditadura e futebol se misturaram
'Pra
frente, Brasil', Brasileirões inchados e jogadores fichados: golpe
militar completa 50 anos; relembre quando o esporte se envolveu com o
regime
Por Daniel MundimRio de Janeiro
56 comentários
“Democracia
para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o
povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado
nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações.”
Tal
trecho faz parte do famoso Comício da Central, realizado no dia 13 de
março de 1964 pelo então presidente do Brasil, João Goulart, no Rio de
Janeiro. Na ocasião, diante de cerca de 200 mil pessoas, Jango assinou
dois decretos que iniciavam as reformas de base que defendia (agrária,
bancária, administrativa, universitária e eleitoral). Foi o estopim para
a ala conservadora da sociedade brasileira agir. Com o pretexto de que
João Goulart pretendia instalar um regime comunista totalitário no país
(veja no vídeo como os militares usaram o Comício da Central), os “democratas” citados pelo então presidente organizaram o golpe.
Em
1º de abril de 1964, Jango era deposto, e os militares assumiam o
poder. Foi instalado um regime que mudou o rumo da sociedade e de muitas
instituições brasileiras, e o futebol, como uma das principais
manifestações de identificação cultural do país, não foi poupado. No dia
em que o golpe militar de 1964 começou a ser instaurado no Brasil
completa 50 anos, o GloboEsporte.com relembra alguns personagens,
histórias e momentos em que ditadura e futebol se misturaram. E não
foram poucos.
João Saldanha foi retirado do comando da Seleção pelos militares (Foto: Ag. Estado)
“90
milhões em ação, pra frente, Brasil, do meu coração”. Qualquer amante
do futebol, de qualquer idade, reconhece os versos que embalaram o
tricampeonato mundial do Brasil, em 1970. A canção de Miguel Gustavo foi
o símbolo do uso da seleção brasileira para promover o discurso
ufanista do governo de Médici. A publicidade do governo militar, que
tinha como principal mentor o coronel Otávio Costa, chegou em seu auge.
Mas a intervenção naquele time foi mais explícita.
João Saldanha,
técnico que assumira a Seleção em fevereiro de 1969, era comunista. A
escolha do treinador se deu pela popularidade de Saldanha, que
participava de programas de rádios do Rio de Janeiro. Mas a postura do
comandante incomodava, e em março de 1970, a poucos meses do Mundial do
México, a comissão técnica do time brasileiro foi toda alterada.
Ainda
no início de carreira, Zagallo assumiu o comando. A chefia da delegação
para a Copa ficou com o major-brigadeiro Jerônimo Bastos, cujo braço
direito foi o major Roberto Câmara Lima Ypiranga de Guaranys, que ficou
responsável pelo esquema de segurança durante o torneio. O nome de
Guaranys pode ser encontrado na lista dos torturadores do regime
militar.
Nome
do major Guaranys, chefe da segurança do Brasil em 1970, entre os
torturadores da ditadura (Foto: Reprodução/Documentos Revelados)
Em
campo, o Brasil formou um de seus maiores times da história, e o
grandioso triunfo diante da Itália foi perfeito para o governo, como
relata o historiador Carlos Eduardo Sarmento no livro “A Regra do Jogo:
uma história institucional da CBF”:
“A catarse coletiva, contudo,
foi largamente manipulada para que se transformasse em um patriotismo
servil, com a vitória em campo associada a uma conquista do regime
militar.”
afonsinho e seu jeito subversivo
Afonsinho, ex-jogador de Botafogo e Santos (Foto: Reprodução/TV Globo)
Filho
de ferroviários de Marília, no interior de São Paulo, Afonso Celso
Garcia Reis conviveu desde criança com causas sociais. E carregou
consigo os ideais formados na infância para o resto da vida. Revelado
pelo XV de Jaú em 1962, Afonsinho se destacou dentro e fora de campo
pelas posições firmes e pela conquista do passe livre dos jogadores que
inspiraram até música – “Meio de Campo”, de Gilberto Gil – e filme -
“Passe Livre”, de Oswaldo Caldeira. Em 1965, o ex-meia foi para o
Botafogo, onde ganhou os principais títulos e chamou a atenção dos
militares.
Estudante de medicina na UERJ, o jogador
participava de grupos de discussão e seguia sua luta para se tornar dono
do próprio passe. A barba e cabelos compridos ajudavam a criar a imagem
“subversiva” do meia, socialista declarado. Tudo que fazia e dizia era
observado.
- A questão do passe na qual me envolvi gerou
repercussões muito grandes de natureza política. Aquilo acabou tomando
vultos que não interessavam ao regime militar. O rumo que aquilo acabou
tomando foi enorme. Minhas posições tinham relação política grande –
avaliou Afonsinho.
Os problemas começaram no clube. O estilo
de vida do jogador não agradava o conservador técnico Zagallo. Afonsinho
treinava separado do restante do elenco. E não jogava. A saída foi ir
embora. Passou por Olaria e Vasco até chegar no Santos, em 1972, onde
sentiu mais próxima a vigia dos militares.
- Em uma excursão
internacional do Santos, o jornalista da delegação teve uma posição
muito digna. Na volta, ele me procurou e disse que havia sido abordado
por órgãos de segurança para saber se na viagem eu fazia alguma coisa,
procurava uma embaixada, algo assim – confidenciou.
nando: o único jogador anistiado
No
dia 9 de dezembro de 1971, o Brasil venceu a Argentina por 1 a 0 e
garantiu sua vaga nos Jogos Olímpicos de Munique, realizados no ano
seguinte. O gol da vitória brasileira foi marcado por uma jovem
promessa: Zico. Nas Olimpíadas de 1972, a surpresa: o técnico Antoninho
não levou o garoto Arthur. Na época, o ídolo do Flamengo não fazia ideia
das razões para o corte da Seleção. Mas seu irmão, o também jogador
Nando, tinha certeza de quais motivos levaram à saída do caçula da
família Antunes da equipe olímpica brasileira.
Incentivado pela
prima Cecília Coimbra – fundadora e presidente do grupo Tortura Nunca
Mais –, em 1963, Nando, que cursava a Faculdade Nacional de Filosofia, e
a irmã Zezé passaram no concurso do Plano Nacional de Alfabetização
(PNA), programa criado por Paulo Freire. Após o golpe militar, o PNA foi
extinto e seus membros considerados subversivos. Já atuante no futebol,
Nando decidiu se dedicar exclusivamente ao esporte. Passou pelo futebol
capixaba e pelo America-RJ, e nos dois clubes foi mandado embora sem
maiores explicações. Em 1968, rumou para o Ceará, onde a situação
melhorou. Até receber uma proposta do Belenenses, de Portugal.
Meteram o capuz na gente, ficamos quatro dias em um corredor, em uma
cela. Passamos dois dias inteiros em pé. O braço descia e eles metiam o
mosquetão nas costas
Nando, irmão de Zico, preso e torturado pela ditadura em 1970
Aos
22 anos de idade, Nando não teve as garantias prometidas pelo clube
português e foi perseguido pela polícia da ditadura de Salazar. Com a
ajuda de amigos, conseguiu voltar ao Brasil, mas teve dificuldades em
seguir a carreira. Em agosto de 1970, no auge da repressão do governo
Médici, a prima Cecília e o marido foram presos. Enquanto consolava a
tia, Nando e os primos foram surpreendidos com o toque da campainha.
-
Um dos meus primos foi atender, e aí entraram aqueles f... da p... com
metralhadora. Levaram a gente, eu mostrei a carteira, me conheceram na
hora, e pedi para o Custódio (Coimbra) ficar. Ele ficou com a mãe, o
resto foi todo mundo em cana. Três irmãos, só liberaram o médico.
Meteram o capuz na gente, ficamos quatro dias em um corredor, em uma
cela. Passamos dois dias inteiros em pé. O braço descia e eles metiam o
mosquetão nas costas – relembra.
Nando e os primos foram
levados para a rua Barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, no Rio de
Janeiro. Os irmãos Edu e Antunes fizeram plantão na porta do local para
que fossem liberados, e o fato de serem conhecidos ajudou na tarefa.
Nando saiu fichado, mas com a ajuda do pai, que conhecia o presidente do
Conselho Nacional do Desporto (CND), conseguiu limpar seu histórico.
Ainda jogou pelo Gil Vicente, de Portugal, mas sem sucesso. Em 2010,
Nando se tornou o único jogador de futebol do Brasil a ser anistiado.
- Em 1969, o Edu foi o craque do ano. Era barbada para ser convocado
para a Seleção. No pré-olímpico, o Brasil se classificou com um gol do
Zico, que era o principal jogador do time. O João Havelange pediu a
relação dos jogadores que iam para as Olimpíadas e devolveu faltando um
jogador. Tudo isso por causa do meu envolvimento com o PNA e com os meus
primos - recorda.
Carlos Alberto Torres, Leão e Pelé entregam placa a Geisel (Foto: Reprodução/Arquivo O Globo)
No
dia 6 de outubro de 1976, o Maracanã recebeu um amistoso entre a
seleção brasileira e o Flamengo. O jogo foi em homenagem ao jovem meia
rubro-negro Geraldo, que morrera em agosto daquele ano, vítima de choque
anafilático quando realizava uma operação para retirada das amídalas. A
renda dos mais de 140 mil pagantes seria destinada à família do
jogador. A partida foi também a última de
Pelé com a camisa da Seleção.
O
Flamengo venceu por 2 a 0, mas no intervalo do jogo sobrou tempo para
um ato político. Três jogadores do Brasil se encontraram com o
presidente Geisel, que estava nas tribunas do Maracanã. Como escreveu o
jornal O Globo na edição do dia 7 de outubro de 1976, “Pelé, Carlos
Alberto e Leão, lhe entregaram, respectivamente, um cartão de prata em
agradecimento pela regulamentação da profissão de atleta, uma Bíblia e
um troféu”.
'Onde a arena vai mal, um time no nacional'
A
frase acima, segundo o historiador Carlos Eduardo Sarmento, é atribuída
ao Almirante Heleno Nunes, presidente da CBD entre 1975 a 1979, e
depois da recém-criada CBF, no biênio 1979-1980. Heleno era presidente
da Aliança Renovadora Nacional (Arena) – partido governista criado após o
golpe – no Rio de Janeiro. Atendendo a interesses dos aliados políticos
em diferentes estados, a CBD passou a convidar equipes para participar
do Campeonato Brasileiro.
Em seu segundo ano à frente da
instituição, Heleno incluiu mais 12 equipes no torneio, que teve 54
times. Em 1977, o número passou para 62. Mas em 1978, ano de eleições, a
lista de convidados aumentou. Foram 74 times, sendo 11 estreantes. Um
exemplo do uso político do campeonato foi o Itabuna, como explica o
jornalista Roberto Assaf no livro “História Completa do Brasileirão”.
“O
Itabuna entrou no campeonato bancado por um mutirão integrado por
produtores de cacau, maior riqueza da região, e pelo governo do estado,
que era da Arena, e que estava de olho na prefeitura do município,
ocupada pelo MDB”
Inter campeão Brasileirão de 1979: campeonato com 94 clubes (Foto: Agência Gazeta Press)
Em 1979, o Brasileirão teria a sua edição com o maior número de
participantes da história – e que dificilmente será batido: 94 clubes,
com 23 estreantes. Curiosamente, foi o único ano em que o campeão
conquistou o título de forma invicta. Com 16 vitórias e sete empates, o
Internacional levou seu tricampeonato.
reinaldo: o punho do protesto
Artilheiro
do Brasileirão de 1977 com 28 gols pelo Atlético-MG, o jovem Reinaldo,
então com 20 anos, já era a alegria da massa. No ano seguinte, chegou à
Seleção e foi levado por Coutinho para a Copa do Mundo na Argentina. Mas
os gols que marcou pelo Galo chamaram atenção do presidente Ernesto
Geisel. O punho cerrado e levantado, um símbolo socialista, era a marca
do jovem atacante a cada tento que fazia. Na preparação para o Mundial,
quando o time brasileiro estava no Palácio Piratini, sede do governo
gaúcho, em Porto Alegre, Geisel deixou um recado para o jovem Reinaldo.
Reinaldo e sua marca registrada (Foto: Mauricio Paulucci)
-
Quando fomos recebidos no Palácio Piratini, o Ney Braga, ministro da
Educação, me conduziu para o presidente, que disse: “É esse que é o
garoto? Você está bem, joga bem. Mas não fala de política, menino. A
gente trata de política”. Diante de um general, fardado, tudo que pude
responder foi “sim, senhor” - conta o maior ídolo atleticano.
O
recado estava dado. Porém, na estreia do Brasil, contra a Suécia, em Mar
del Plata, quando Reinaldo marca o gol de empate por 1 a 1, não hesita
em parar e erguer o punho direito, mesmo que por poucos segundos. O
atacante ainda jogaria a próxima partida, contra a Espanha, mas não
voltaria mais ao time. Segundo o ex-jogador, o Almirante Heleno Nunes,
presidente da CBD na época, tirou ele e Zico do time. Mas o Rei não se
queixa.
- Na minha vida de jogador, não tinha tempo para
protestar, armar nada contra o governo. Não era assim. Claro que tem
ficha minha no Dops (Departamento de Ordem Política Social), pelas
minhas amizades, pelos eventos que eu ia, lançamento de livros. Mas
participei dessa geração de luta. Hoje, com meus 57 anos, estou
desfrutando de uma democracia na plenitude. Esse é o meu grande orgulho.
Alguns pagaram com a vida para isso. Eu simplesmente participei dessa
geração dentro do futebol.
Sócrates, casão e até pelé: os fichados do dops
Ficha de Sócrates no Dops SP (Foto: Reprodução/Arquivo do Estado de São Paulo)
Na
fase final da ditadura, um movimento marcou o futebol brasileiro. Em
1981, liderado por Sócrates, Casagrande e Wladimir, o Corinthians
iniciou a chamada Democracia Corintiana, onde jogadores, comissão
técnica e diretoria decidiam tudo no clube por meio do voto. A
iniciativa não foi uma surpresa para quem conhecia seus mentores,
principalmente o Magrão. Sócrates era atuante no movimento a favor das
eleições diretas, além de ser esquerdista.
Com tal atuação, os
atletas eram observados pelo regime militar e tinham fichas no Dops. Nos
arquivos relacionados ao “Doutor”, aparecem registros de jornais que
citam a participação do ex-jogador em alguns eventos, incluindo uma
sessão do Movimento Pacifista Brasileiro. Nem mesmo Pelé escapou. O
prontuário do Rei relata que o atleta recebeu pedido de indulto de três
presos políticos e comprou ações de uma rádio.
Ficha de Pelé no Dops SP (Foto: Reprodução/Arquivo do Estado de São Paulo)
didi pedalada: jogador torturador
Didi Pedalada: agachado, o terceiro, da esquerda para a direita, com o Cruzeiro-RS de 1969 (Foto: Reprodução/Cruzeiro-RS)
Em
novembro de 1978, o jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha, à época
repórter da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, recebeu um
telefonema anônimo. Na ligação, Luiz foi alertado de que um casal
uruguaio, que morava na capital gaúcha, fora sequestrado. O repórter, ao
lado do fotógrafo João Baptista Scalco, foi até o apartamento citado
pela denúncia.
Lá, descobriram que militares uruguaios e
brasileiros estavam em uma ação clandestina, que fazia parte da Operação
Condor – aliança dos regimes sul-americanos de combate a opositores –,
na qual os militantes da oposição uruguaia Universindo Rodríguez Díaz e
Lílian Celiberti e seus dois filhos haviam sido sequestrados. A operação
foi desfeita, e o casal, que seria assassinado, libertado. Em 1980, a
Justiça brasileira condenou dois policiais: João Augusto da Rosa, do
Dops gaúcho, e Orandir Portassi Lucas, mais conhecido como Didi
Pedalada.
Didi se destacou nos anos 60 e 70 atuando por
Internacional e Atlético-PR. Jogou também por Guarany de Bagé e
Cruzeiro-RS e em clubes do México e dos Estados Unidos. Ao encerrar a
carreira, se tornou escrivão da polícia e, segundo os relatos de
Universindo, um dos seus sequestradores que mais o torturavam. Didi
faleceu em 2005, vítima de parada cardíaca.