Como materializar o prazer de ver Leônidas da Silva desfilar nos
gramados? Talvez somente uma substância capaz de inundar o cérebro de
êxtase: o chocolate. No período em que o mundo da bola transitava entre o
amadorismo e o profissionalismo, os pés de um homem inspiraram uma
geração inteira e ajudaram a difundir o futebol como um esporte
tipicamente brasileiro. Das peladas em São Cristóvão, no Rio de Janeiro,
para as prateleiras dos supermercados, o Diamante Negro brilhou e
transcendeu o tempo presente para ficar para sempre nos livros de
história. Sim, um apelido de jogador de futebol virou nome de chocolate.
E não era um jogador qualquer. Era, simplesmente, um fora de série.
Fosse vivo, Leônidas completaria 100 anos nesta sexta-feira. Porém, a
eternidade da sua obra de arte mais conhecida, a bicicleta, jogada das
mais difíceis de serem executadas e que o centroavante fazia com
maestria, estará garantida até que o último campo de terra batida
desapareça.
Leônidas
no São Paulo executando a maior das suas obras, a bicicleta, jogada em
que o jogador pula de costas para dar a pedalada no ar para acertar a
bola. E foram vários os gols marcados, principalmente no Tricolor
Paulista e no Flamengo, clubes em que atuou por mais tempo e foi ídolo
(Foto: Reprodução)
Seduzida pela fama alcançada pelo melhor jogador da Copa do Mundo de
1938, a fábrica Lacta resolveu rebatizar um de seus produtos mais
badalados em uma homenagem ao atacante. Primeiro, se chamava Chocolate
ao Leite com Crocante Lacta. Depois, o primeiro chocolate crocante do
Brasil passou a se chamar Diamante Negro. Além de popularizar o futebol
e, sobretudo, o Flamengo, a imagem de Leônidas alavancou a venda da
barra, ainda hoje a mais vendida do país. Segundo a própria empresa, o
produto possui 4% de toda a vendagem nacional da guloseima.
- Em 1938, Leônidas da Silva se consagrou como melhor jogador da Copa
do Mundo. Nesse mesmo ano, a Lacta criou o primeiro chocolate crocante
do país e buscou atrelar a popularidade do jogador ao novo produto -
explicou a Lacta em nota.
A ideia foi apresentada ao craque pelo comendador Lorenzetti, um dos
diretores da empresa, mas a novidade era tanta que os envolvidos não
sabiam exatamente quanto deveriam pagar pelo direito de imagem. O
contrato fechado, segundo confirmou a própria Lacta na primeira
resposta, acabou sendo de 2 contos de réis, além de uma participação nas
"vendas futuras".
Leônidas
da Silva ganhou 2 contos de réis à época para ceder apelido Diamante
Negro a uma marca de chocolate: ídolo foi pioneiro no marketing
esportivo brasileiro (Foto: arte esporte /Cláudio Roberto)
- Ninguém manda nada para mim. Ele ganhou um dinheiro, mas não passou
disso. Eu não ganho nem um chocolate. Mas também não estou muito
interessada. Se não fizeram nada até agora, não vão fazer. Então eu não
penso nisso - desmentiu Dona Albertina Santos, viúva de Leônidas.
No início da noite desta sexta-feira, a Lacta informou que o contrato
de vendas futuras era estabelecido em um tempo predeterminado. No
entanto, a empresa não soube responder até quando o compromisso vigorou.
Apesar do conflito de informações, cabe ressaltar que estaria sendo
dado, naquela época, um dos primeiros passos do marketing esportivo
brasileiro. Nada mais justo para um jogador que mais parecia estar
vestindo terno, gravata e chuteiras, tamanha sua elegância e delicadeza
dentro das quatro linhas.
Brasileiro da cabeça ao sapato, tinha a improvisação, a molecagem, a sensualidade do nosso craque típico"
Nelson Rodrigues
O mito que foi Leônidas não se baseia apenas nas lembranças daqueles
que o acompanharam. Os números também sustentam seus feitos. Afinal,
ninguém possui uma média de gols maior com a camisa da seleção
brasileira. Foram 38 tentos em 38 partidas - um gol por jogo. Somente em
Copas do Mundo, balançou a rede oito vezes em cinco partidas.
- Era um artilheiro espetacular. Um grande jogador. Técnico, rápido,
sabia tudo. Era simplesmente um craque - disse aquele que entende do
assunto: Ademir da Guia, um dos maiores ídolos do Palmeiras e filho de
Domingos da Guia, grande amigo de Leônidas.
Em 1938, no Fla, Leônidas era popular como Getúlio
Vargas (Foto: Divulgação / Site Oficial do Flamengo)
Pelo clube que o alavancou, o Bonsucesso, Leônidas colocou seu nome em
definitivo no livro da eternidade. Foi vestindo a camisa do Leão da
Leopoldina que executou, pela primeira vez, a bicicleta. Jogada da qual
não foi inventor, mas que de longe foi o maior executor. O estádio do
clube por onde marcou o primeiro gol dessa maneira, inclusive, ganhou
seu nome.
- Leônidas era o Pelé da época. No entanto, foi Pelé numa época em que
ainda não existia a grande mídia. Um jogador fora de série - resumiu
André Ribeiro, jornalista responsável pela biografia mais completa do
jogador.
Em clubes grandes, Leônidas é ídolo principalmente no Flamengo e no São
Paulo. Ambos, aliás, não deixaram seu centenário passar em branco. O
Rubro-Negro estampou "#Leonidas100" na parte de trás da camisa na
partida contra o Vitória, na quarta-feira. E o Tricolor enfrentou o
Criciúma com um uniforme retrô em nome do craque, além de também ter
convidado Dona Albertina Santos, a viúva do jogador, para comparecer à
sede do clube na última quinta.
Albertina, viúva de Leônidas, recebe homenagem do São Paulo (Foto: Luiz Pires / Vipcomm)
Foi Dona Albertina, que hoje está com 85 anos, quem conheceu a outra
face de elegância do jogador: o romantismo. Com Leônidas de chuteiras
penduradas, ela se apaixonou pelo charme do negro com quem ficaria até a
morte. E cerca de 11 anos após seu falecimento, Albertina ainda lembra
dos atributos de sua paixão.
- Quando a gente se conheceu, na época, ele viajava muito. Também me
convidava para ir ao aniversário dele, para almoçar, e eu nunca o levava
a sério. Levou uns dois anos para a coisa acontecer. Ele sempre foi
muito bonitão, muito chique, arrumadinho. E me chamava de princesa -
recordou a viúva.
O início e a bicicleta
Nascido em São Cristóvão, Leônidas deu seus primeiros passos no clube
do bairro, em 1923. Ficou por lá até 1929, quando se transferiu para o
clube também carioca Sírio Libanês. Embora já se passassem seis anos de
carreira, o Brasil só conheceu o jogador em 1931. Leônidas se transferia
para o Bonsucesso. Leônidas se transferia para a história.
No dia 24 de abril do ano seguinte, na partida entre Bonsucesso e Carioca, executou a bicicleta pela primeira vez na carreira.
A bola era a lua cheia de graça de Leônidas da Silva"
Armando Nogueira, jornalista
- Acho que a história do Leônidas, apesar de ter começado no
Bonsucesso, se deu a partir da sua fama na Seleção. Mas foi no
Bonsucesso, clube pelo qual fez aquele gol de bicicleta, que marcou a
história. Ele lançou a jogada no Teixeira de Castro, que, anos depois,
foi eternizado com o nome dele - contou José Ferreira Simões, atual
presidente do clube carioca.
Leônidas eternizado na sede do São Paulo com jogada que imortalizou (Foto: David Abramvezt)
Na equipe rubroanil, Leônidas ficou apenas dois anos. Mas o suficiente
para explodir e chamar a atenção de outras equipes. Inclusive do
exterior. Fechou com o Peñarol, do Uruguai, de onde já teria voltado com
seu primeiro apelido: Homem-Borracha. Uma alusão a sua elasticidade,
necessária para executar a bicicleta. Também passou por Vasco e Botafogo
antes de chegar ao Flamengo, em 1936. E foi campeão carioca nos dois
clubes. Pelo time cruz-maltino, em 1934. Pelo alvinegro, em 1935.
Inventor ou maior executor?
Por muito tempo, acreditou-se que Leônidas teria sido o inventor da
bicicleta. Reza a lenda que o craque teria visto Petronilho de Brito
executar a difícil jogada e a aperfeiçoou. O próprio Leônidas nunca
rogou a si mesmo a invenção da obra, mas também não deixava de dizer que
a popularizou - o Rei Pelé, após ter visto o Diamante Negro fazê-la,
foi um dos que também a realizaram com sucesso.
Lênidas na época que vestia a camisa do Fla (Foto:
Reprodução/Site Oficial do Flamengo)
- Um dia, ele ainda lúcido, me disse: "Já se fazia. Eu, por ser um
homem famoso, a popularizei. Não sou o inventor, não cometeria essa
leviandade. Eu era apenas um dos melhores executores" - disse André
Ribeiro.
A viúva do jogador faz coro com o jornalista. Ela acrescenta que o
próprio marido acredita que foi o maior divulgador da jogada.
- Olha, é o seguinte: ele sabia muito bem do talento dele. Sabia o que
era, o que ele valia. Eu vou dizer o que ele sempre disse. São palavras
dele: "O futebol tem mais de 100 anos. Com certeza, alguns jogadores
fizeram essa jogada, só que não deram nome. Era uma jogada qualquer. Ele
não acha que inventou, mas acha que foi quem mais divulgou a jogada -
disse.
Anos de ouro e prisão
Em 1936, Leônidas chegou a um Flamengo que amargava um jejum para lá de
desconfortável. Afinal, eram nove anos sem um título sequer. Antes de
levantar a taça pelo Rubro-Negro, no entanto, o jogador sentiu o gosto
amargo de ser derrotado em Estaduais pelo maior rival da época, o
Fluminense, da dupla Romeu e Tim. O título que deu fim à sequência
negativa do clube surgiu apenas em 1939. Em seis anos de Flamengo, o
atacante marcou incríveis 153 gols em 149 partidas, o que o faz o
jogador com a maior média de gols da história do clube rubro-negro.
A contratação de Leônidas, juntamente com as de outros dois craques
negros, Domingos da Guia, o Divino Mestre, e Fausto dos Santos, o
Maravilha Negra, elevou o Flamengo a um patamar que o tornou
definitivamente um clube de massa. Foi um salto gigantesco de
popularidade da equipe que hoje possui a maior torcida do Brasil.
Você pensava que o "Diamante" fosse joia de mentira para tapear/
Você pensava que o "Caboclinho" fosse negro de senzala para se
comprar/Só porque viu que ele tem um pé que deixou o mundo inteiro em
revolução/Quando ele bota aquele pé em movimento,
chuta tudo para dentro e não tem sopa não."
Música "Deixa falar",
de Nelson Pertesen,
interpretada por
Carmen Miranda
Durante a Copa de 1938, Leônidas chegou ao auge da carreira. Em
pesquisa, sua popularidade foi comparada com a do presidente da
República, Getúlio Vargas. No Mundial, encantou o mundo e o jornalista
francês Raymond Thourmagen, que, reza a lenda, criou o apelido de
"Diamante Negro". Além da alcunha, o craque voltou como artilheiro da
Copa e com o status de melhor atleta da competição na bagagem. O Brasil
ficou em terceiro lugar, a melhor posição da Seleção até então. Uma
lesão o tirou do jogo contra a Itália, equivalente à semifinal do
torneio, que culminou com a eliminação do Brasil.
- A genialidade dele fez falta naquela última partida da Seleção - lamentou Ademir da Guia.
Leônidas era tão querido que acabou homenageado com uma canção de
Nelson Pertesen, interpretada por Carmen Miranda. A música começa com
narração de gol do Diamante Negro feita pelo compositor e locutor de
rádio Ary Barroso, que logo após tocar sua inconfundível gaita dá espaço
para a voz marcante da legendária cantora.
Ainda no Flamengo, Leônidas quase viu sua carreira chegar ao fim. O Fla
planejava fazer uma excursão ao Uruguai em 1941. Grande ídolo e gerador
de receitas do clube, o jogador alegou uma lesão no joelho e se recusou
a ir. O presidente do Rubro-Negro, Gustavo Adolpho de Carvalho, então,
declarou guerra contra Leônidas. Descobriu que o jogador, ainda jovem,
havia falsificado seu certificado de alistamento militar. O atacante foi
denunciado e preso por cerca de oito meses.
Nas
parte inferior das camisas do Flamengo na partida contra o Vitória, na
última quarta-feira, a homenagem do clube ao centenário de nascimento do
ídolo com a hastag #leonidas100 (Foto: Alexandre Vidal / Fla Imagem)
O exterminador de recordes
A saída do Flamengo foi melancólica. Porém, altamente lucrativa. Para
quem, é difícil dizer. Em baixa, o São Paulo o contratou por 200 contos
de réis em 1942, a maior transação da história do futebol sul-americano
até então. A quantia depositada no jogador era alvo de desconfianças,
mas o atacante logo tratou de fazer valer o investimento. Logo na
estreia do craque, contra o Corinthians, no dia 25 de maio daquele ano, o
Pacaembu teve recorde de público, que se sustenta até os dias atuais:
71.280 pessoas foram prestigiar a primeira partida de Leônidas no
Tricolor.
Homenagem no São Paulo (Foto: David Abramvezt)
Pelo São Paulo, jogou 211 partidas e marcou 144 gols. Número que o
coloca como o sétimo maior artilheiro do clube, com a nona maior média
de gols. Foi pentacampeão paulista, levantando o caneco em 1943, 1945,
1946, 1948 e 1949. Leônidas foi simplesmente fundamental na inserção do
clube no cenário nacional do futebol.
Talvez o único azar na carreira de Leônidas tenha sido os cancelamentos
das Copas do Mundo de 1942 e 1946, por conta da Segunda Guerra Mundial.
Na de 50, quando já tinha 37 anos, o técnico da Seleção, Flávio Costa,
optou por não convocar Leônidas.
- Muitos dizem que a convocação dele mudaria essa história. O que
poucos sabem é que ele tinha uma rixa com o Flávio Costa. Mas se ele
estivesse naquela Copa, o Brasil teria sido campeão - não hesitou em
afirmar a viúva, Albertina.
Leônidas nunca escondeu a indignação por ter ficado de fora da Seleção
vice-campeã de 50. Em uma entrevista ao jornal "Mundo Esportivo", em
abril de 1949, ele disparou:
- Com Flávio Costa, o Brasil ganhará o Sul-Americano, mas não será campeão do mundo - profetizou.
Sucesso também fora de campo
Sua aposentadoria surgiu em 1949, quando pendurou as chuteiras de forma
oficial, já que entrou em campo outras vezes para partidas
comemorativas. A partir daí, Leônidas se tornou um craque no microfone.
Virou comentarista. Não um qualquer, cabe ressaltar. Afinal, o
ex-jogador conquistou sete prêmios Roquete Pinto, o maior da época, por
seus comentários.
Dona Albertina ainda se derrete por Leônidas.
Saudade é imensa (Foto: David Abramvezt)
Cobriu a Copa do Mundo da Suécia, em 1958, época em que Dona Albertina recorda um outro dom do ídolo.
- Ele escrevia muito bem. Na Copa da Suécia, me mandava algumas cartas.
Eu costumo dizer que, se ele não tivesse sido jogador, teria sido
escritor. Tenho até hoje umas cartas muito bonitas que ele me escreveu
naquela época - lembrou Albertina.
Como comentarista, Leônidas seguiu até meados de 1974, quando os
primeiros traços do mal de Alzheimer começaram a atacá-lo. Foram quase
20 anos com a doença até a internação se tornar inevitável. A Casa de
Repouso São Camilo, em São Paulo, foi seu lar nos últimos 11 anos de
vida.
'Pulava até janela'
São poucos aqueles que podem dizer que acompanharam os últimos momentos
da vida de Leônidas. Uma dessas pessoas é um senhor chamado Raimundo
Visotto, de 61 anos. Ele é gerente geral do Recanto São Camilo, onde
trabalha há cerca de 40 anos. Ele já frequentava o local na época em que
o craque foi internado e ainda estava lá quando ele se foi.
Privilegiado, Raimundo lembra especialmente da vivacidade de Leônidas.
Após aposentadoria, Leônidas recebeu prêmios
como comentarista (Foto: Reprodução SporTV)
- Não cuidei diretamente dele, já que eu fico mais com a parte
administrativa do recanto. Mas eu conversava com ele sempre que podia.
No começo, era bastante lúcido. Vivo até demais, pulava até janela
(risos). Depois, o Alzheimer foi piorando, cada dia pior, até o
falecimento. Mas nos cerca de 11 anos que ele ficou aqui, a gente
conversou muito, principalmente sobre futebol - lembrou, com carinho, o
gerente.
Lembrado em célebres crônicas de jornalistas como Nelson Rodrigues e
Armando Nogueira, Leônidas morreu no dia 24 de janeiro de 2004, aos 90
anos, em decorrência das complicações do Alzheimer e de um câncer na
próstata. Era o fim da passagem de um ser iluminado pela Terra. E a
certeza de que o futebol nunca mais seria o mesmo.