Rico faz do surfe 'remedinho', chega aos 60 anos e vai à telona em filme
Da prisão na ditadura às mais de 100 viagens ao Havaí,
carioca carregou o Brasil sobre a prancha, colecionou amigos e construiu
a história do esporte
Por Gabriele Lomba
Rio de Janeiro
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São duas histórias que se confundem. Há 60 anos, nascia Ricardo Fontes
de Souza. Um menino que não dava bola para futebol e ficou boquiaberto
ao se deparar com uma foto do Havaí em uma revista. Viu naquelas páginas
o engatinhar de um esporte que mal conhecia. Ajudou a construí-lo, fez
dele seu ganha-pão, sua vida. Enfrentou a proibição da família e
aventurou-se sozinho pelo mundo, levando a bandeira do país sobre a
prancha. Driblou a repressão durante a ditadura militar, colecionou
títulos e amigos, muitos amigos. Em breve, toda essa história será
contada em filme. Produzido pela Sentimental e Tal e dirigido por Guga
Sander, "Surfar é coisa de Rico" chegará aos cinemas em novembro.
Concorra a uma prancha e a uma aula de stand up paddle
Rico era um menino do Rio, de um Leblon nobre, mas poluído - apelidado
pela turma do surfe de "shit point". Magrinho, aprendeu desde cedo que
era mais fácil percorrer a praia pelo mar, remando, do que carregando
uma prancha de madeirite debaixo do braço. Aprendeu a consertá-las e fez
disso sua profissão. Está até hoje no ofício, mas agora só fabrica para
os camaradas. Fundou a primeira escola de surfe do país. Também é dono
de um quiosque na Praia da Macumba, do site
Rico Surf - parceiro do GLOBOESPORTE.COM -, faz boletim em uma rádio, organiza eventos e está sempre em busca de recordes. O segredo?
- Se eu não tomar meu remedinho... meu remedinho é o surfe (risos). Se
não surfar, dou defeito. É como se fosse uma droga. Não bato bem quando
fico um tempo sem pegar onda. Sabe quem é a única pessoa que pode dizer
que você está velho? O mar. Em 30 segundos ele te dá uma coça. Idade
está na cabeça e no físico.
Rico na época em que era patrocinado pela TV Globo (Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
Rico não sente o peso da idade e chega a chorar ao ver um idoso em
dificuldade. Talvez seja porque perdeu o pai quando tinha 18 anos, logo
após a conquista de um de seus três títulos brasileiros (1969, 1972 e
1973). Tanto tempo depois, a ausência ainda dói. A mãe também já partiu,
assim como um de seus irmãos.
Há 13 anos, ele mesmo viu a morte de perto. Duas vezes. Uma infecção
generalizada o afastou do surfe por 12 meses. Na volta ao mar, em
Sunset, no Havaí de seu coração, quase não resistiu depois de ser
varrido por uma onda.
- Vi a vida toda passar. Pensei: "Poxa, passei um ano no hospital e vou morrer assim???"
Rico é um surfista boa praça, educado, atencioso, romântico. Há 25 anos
casou-se com Claudia, com quem nesta terça-feira, Dia dos Namorados,
deve tomar um bom vinho, única bebida alcoolica que aprecia. Os filhos,
Eric (24) e Patrick (13), herdaram do pai a paixão pelo mar, pelo surfe.
Durante sua conversa com o GLOBOESPORTE.COM, recebeu telefonemas dos
longboarders Phil Rajzman e de Chloé Calmon. Phil, campeão mundial,
aprendeu a surfar aos 7 anos, com Rico. Chloé usa suas pranchas.
- São meus filhos... - diz, orgulhoso.
De stand up paddle, sua nova paixão (Foto: Divulgação / Sentimental eTAL)
Rico tem um milhão de amigos: de políticos e empresários a, claro,
lendas do surfe. Uma delas é Clyde Aikau, irmão caçula de Eddie Aikau,
salva-vidas que morreu em 1978 e dá nome à mais tradicional competição
de ondas grandes. Coube a Rico, durante uma viagem à Austrália, dar ao
havaiano a triste notícia. Fast Eddie, figura máxima do localismo
havaiano, também é seu camarada. Participa do filme, até, assim como
Daniel Friedmann e os atores Evandro Mesquita e Kadu Moliterno.
O Rico sessentão há tempos tirou o bigode, sua marca registrada por
longos anos. Agora, quer trabalhar menos e viajar mais, curtir mais a
família. Diz que toda pessoa tranquila, como ele, em algum momento
explode. Este, para ele, é um de seus defeitos. O outro?
- Eu falo muito - ri.
No museu que montou em um restaurante no Rio (Foto: Gabriele Lomba / GLOBOESPORTE.COM)
De fala solta, Rico transforma suas muitas histórias em relíquias, como
as que tem em seu museu do surfe. Confira algumas delas:
PRIMEIRA PRANCHA
Eu morava no Leblon, na esquina da praia. Nunca gostei muito de
futebol. Gostava de pescar e de pegar jacaré. Aos 9 anos, vi o Havaí
numa revista, mostrei pro meu pai e falei: "é isso". Comecei a pegar
onda com prancha de isopor, em pé. Comprei minha primeira madeirite
depois de vender garrafas, tampa de leite de alumínio e chumbo de
construções. O canto do Leblon era chamado de Shit Point, porque o canal
trazia detritos. Minha família não aceitava que eu surfasse, que
tivesse aquele lifestyle. Meu tio era presidente da Caixa Econômica. Meu
pai queria que eu fosse advogado, como. Fiz direito até o sexto ano e
não me arrependo.
Rico em foto da década de 60
(Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
FRUSTRAÇÃO NA PRIMEIRA VIAGEM
Depois do Brasileiro de 1969, fui convidado, no ano seguinte, para ir
ao Peru. Era minha primeira viagem internacional, onde teria contato com
os melhores do mundo. Fui com uma prancha pequena, e o mar estava
grande. Na primeira onda em Punta Roca, a prancha quebrou. Não deu nem
para sentir o cheio da competição... No ano seguinte, fui para a final
com os melhores do mundo. Foi especial.
PRIMEIRA DAS 108 VEZES NO HAVAÍ
A primeira vez que fui ao Havaí foi em 1972. Tinha sido campeão, mas
não falava inglês, nada. Fui a um programa de TV para pedir uma
passagem. O Pelé estava lá também. Eu estava com 39 de febre, mas fui e
ganhei a passagem. Fui 108 vezes ao Havaí. Vou duas ou três vezes por
ano. Fiz muitos amigos por lá. Sai até briga para ver onde eu vou me
hospedar (risos)...
PESADELO NA CALIFÓRNIA
Antes de ir ao Havaí, fui para a Califórnia e detestei. Eu morava numa
garagem, a duas horas da praia. A água era fria, eu não falava inglês.
Ninguém conhecia o Brasil. Eu chegava a chorar de tristeza. Aí conheci o
Randy Rarick, e ele me deu força para entrar no campeonato. Surfei com
Michael Ho, conheci a galera e comecei a trabalhar fabricando prancha.
Quando o pessoal foi para o Havaí, aluguei uma casa lá, ao lado de
Sunset. Nas filmagens do filme, voltei lá na casa e descobri que ela é
de um amigo meu.
Na década de 80, Rico exibe alguns de seus
troféus (Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
ATLETA DA TV GLOBO
A Globo me dava passagem, suporte, e eu arrumava alguém para surfar.
Sabe quem narrava os filmes que eu mandava? O Leo Batista. Fui competir
no ano seguinte na África do Sul e, sem eu saber, tiraram um foto minha e
usaram no pôster no mundial. Aparecia a prancha da Globo nos ônibus,
carros, outdoors.
CONTRA CULTURA NA DITADURA
Foi um período ruim para toda a juventude. O surfe era contra cultura,
foi o primeiro esporte a se revelar contra a sociedade, contra os
militares. Ao mesmo tempo que era contra, a gente fazia coisas fora do
tradicional. A gente quebrava o tabu: música, yoga, primeiro restaurante
vegetariano. Era uma época de experiências. A sociedade era tão tolhida
que dava vontade de fazer tudo. Como quando as meninas iam para
Saquarema...(risos) era uma época de descobertas.
NA CADEIA POR... SURFAR
Em 1973, no Fusca que servia de casa durante os
campeonatos (Foto: Arquivo / RicoSurf.com)
A minha prisão é um dos pontos altos do meu filme. Era 1974 ou 1975.
Era proibido surfar depois das 8h e antes das 14h e só podia surfar nos
cantos de pedra: Arpoador, Canto do Leblon, Posto Seis.... Várias vezes a
minha prancha foi apreendida. Uma vez estava de Madeirite, nos anos 60,
fugindo da polícia, e a prancha caiu e abriu em dois. Foi horrível,
chorei muito. Mas neste dia em que fui preso, o mar estava enorme.
Arpoador estava perfeito, eu ia disputar o Mundial no Havaí. Eram 9h.
Falei: "Seu guarda, não tem um banhista na praia. Deixa eu cair, pelo
amor de Deus". Ele disse que seu eu fosse surfar, iria chamar o Choque.
Eu disse: "Então pode chamar que eu estou indo surfar". Entraram cem
caras surfar, e o Choque veio, de metralhadora, helicóptero. Fiquei até
as 16h para dar a hora de eles irem embora. Remei até o hotel Sheraton.
Cheguei junto com a polícia lá. Subi a encosta e entrei na casa do meu
amigo Sergio Bernardo, arquiteto. Subi uma pirambeira, pulei para a casa
dele. Tinha uns dez camburões e prenderam a gente. Fomos levados ao
batalhão. Uns guardas eram meus amigos, outros não. A gente não tinha
feito nada, então os canas liberaram a gente.
Na sala onde fazia pranchas, em Barra de
Guaratiba (Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)
FESTAS, DROGAS OU TRABALHO?
Nunca gostei tanto de festa, sempre fui mais do dia. Era um dos poucos
caras trabalhadores. Minha liberdade vinha do meu trabalho. Trabalhava,
voltava para pegar onda. Não gostava de drogas. Antigamente não era como
hoje em dia, era mais experimental. No meio dessas experiências, vários
amigos não tiveram sucesso... Mas vejo mais problema atualmente. Dos
anos 60 aos 80, aponto menos gente se acabando do que dos anos 80 para
hoje. Eu gostava de namorar. Passava nas festas e depois ia dormir cedo.
Droga não bate com meu estilo de vida. Não bebo cerveja, não curto.
Quando tinha 12, 13 anos, tomei um porre de uísque que hoje não consigo
nem sentir o cheiro. Competi dez anos na França. Hoje adoro vinho. A
curtição é a qualidade, não quantidade. Aprecio isso como se fosse minha
liberdade. Sou avesso a cigarro, tenho alergia.
PERDAS NA FAMÍLIA
Quando fui campeão em Ubatuba, em 1973, meu pai (Sebastião) teve três
derrames. Foi muito ruim. Eu vivia dois mundos. Passava o dia inteiro
pegando onda, feliz, e ia visitá-lo no hospital e saía de lá triste,
sozinho. Era a alegria do esporte e a tristeza de ver meu pai doente.
Minha mãe faleceu há dez anos, e um dos meus irmãos faleceu também. É
chato para qualquer um, principalmente quando você é garoto. Eu não
tinha amparo de ninguém. Até hoje é triste...
Com Fast Eddie, local do Havaí, durante gravação
para o filme (Foto: Divulgação / Sentimental eTAL)
MORTE DE PERTO
Quando meu filho caçula tinha um mês (Patrick, de 13), estava me
preparando para um Mundial aqui no Brasil e comecei a me sentir mal, com
febre. Descobri que estava com diverticulite. Meu intestino estourou,
tive infecção generalizada. Passei um ano sem pegar onda. Meu coração
bateu a 35. Os médicos ficaram surpresos por eu não ter sequelas. Quando
voltei a surfar no Havaí, havia apenas ondas pequenas no primeiro e no
segundo dia. No terceiro, o mar estava grande em Sunset. Minha mulher
estava na beira. Resolvi furar as ondas, em vez de usar o canal. Uma
onda gigante me pegou, perdi todo o ar. Tentei subir e não consegui. vi a
vida toda passar. "Poxa, passe um ano no hospital e vou morrer assim?"
AMIZADE COM FAMÍLIA AIKAU
Ganhei do Clyde Aikau uma foto do Eddie surfando Waimea Bay. É a única
foto dele no Brasil. Sabia que eu dei a notícia da morte para a família,
quando ele sumiu no mar? Estávamos na Austrália com todos os havaianos.
Ele falou para mim: "Rico, dá uma olhada no meu irmão". Eddie resolveu
voltar ao Havaí, para remar do Havaí ao Taiti, só pelas estrelas, no
remo. Depois de um dia e meio de viagem, o barco virou, e ele tentou
pedir socorro. Dez dias depois, eu e Clyde estávamos Bells Beach, quando
bateram na nossa porta avisando. Acordei o Clyde. Imagina... Foi
difícil. Eu não tinha tanta intimidade....E na época ninguém tinha
dinheiro para voltar ao Havaí. Fizemos uma vaquinha, e ele devolveu
tudo. A partir daí ficamos muito amigos. Clyde veio ao Brasil quando
lançamos o museu do surfe. Eu não falava muito com o Eddie porque ele
não era muito de falar, como eu (risos). Ficava horas e horas dentro
d'água, sempre se colocando mais para fora do pico. Quando vinhas as
maiores e melhores ondas, ele dropava. Fico orgulhoso por ele ter me
escolhido para cuidar do irmão dele. Os havaianos têm coração muito
grande.
GUGA KUERTEN E PEPÊ
Quando Guga venceu Roland Garros, liguei para a Dona Vera, mãe do Pepê.
Falei para ela que via, na parte de cima do rosto do Guga, a expressão
dos olhos do Pepê. Ela concordou. Ele era uma pessoa muito especial...
BRASIL CAMPEÃO MUNDIAL?
Minha vida inteira foi levada com esse objetivo de levantar a bandeira
do surfe. Quarenta anos depois, vejo que estamos perto. De todas as
minhas conquistas, o que mais me orgulha é ser chamado de embaixador do
surfe no Brasil. Gabriel Medina, Adriano de Souza...Se eu pudesse dar
uma dica? Eles têm que ficar mais tempo em ondas como Havaí e Teahupoo.
Isso que vai definir o campeão.
Rico em uma onda em Pipeline, em 1976 (Foto: Arquivo Pessoal / RicoSurf.com)