O segredo de outro sucesso: como a Alemanha criou empatia com o Brasil
Através
do Flamengo, ideia desde 2013 era se tornar o segundo time dos
brasileiros. Federação assume projeto para desenvolver crianças e deixar
legado em pacata vila
Por Sergio Gandolphi e Victor CanedoSanta Cruz Cabrália, BA
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Não
foi o compacto 4-3-3, tampouco os lançamentos milimétricos de Toni
Kroos, o faro de gol de Thomas Müller, a invejável classe de Bastian
Schweinsteiger ou as defesas memoráveis de Manuel Neuer. Definitivamente
não foi apenas o futebol a transformar a Alemanha numa campeã mundial
no último domingo. Ainda que em menor escala, o sucesso quase absoluto
entre os brasileiros passa por um processo pautado em 2013.
Houve
um planejamento por trás das ações realizadas, talvez a maioria delas. A
preocupação com a imagem do país perante o povo local era evidente – e
não há oportunidade melhor do que uma Copa do Mundo para convencer
gregos e troianos de que eles podem ser amigos. A Alemanha sequer
precisou disso: gestos, previsíveis ou não, conquistaram um pedacinho no
coração de quem pôde seguir os passos do time de alguma maneira durante
os 37 dias no Brasil.
– Nossa preparação para a Copa do Mundo
começou em 2013. Pensamos nas estratégias comerciais, parceiros, TV,
propagandas. Mas também preparamos como iríamos agir, estar aqui e fazer
parte do torneio. Nosso alvo desde cedo era ser o segundo time mais
popular da Copa no Brasil – disse Patrick Kisko, chefe de marketing da
DFB (Federação Alemã), em entrevista ao SporTV.
Mesmo sem jogar tanto, Podolski virou o símbolo da aproximação entre Alemanha e Brasil (Foto: Reprodução / Instagram)
A
grande sacada envolveu o Flamengo. Através da Adidas, fornecedora de
material esportivo em comum, a seleção alemã criou uma camisa reserva
rubro-negra. Havia uma insatisfação com o modelo antigo, o verde
utilizado na Eurocopa de 2012 – o que, neste caso, permitiu uma
"revolução" no uniforme. Bastou aos responsáveis ligarem os pontos para
concluir que o clube mais popular do país seria um fator atraente.
A
Alemanha utilizou a camisa em duas oportunidades: na vitória por 1 a 0
sobre os Estados Unidos, na última rodada da fase de grupos, no Recife, e
no histórico 7 a 1 contra o Brasil, na semifinal, em Belo Horizonte. A
seleção jogou de branco em ambas as vezes em que atuou no Maracanã –
quartas de final, contra a França, e decisão, diante dos argentinos –,
mas estava claro nas arquibancadas que a novidade encantou os
rubro-negros. E nem mesmo os rivais (torcedores de Fluminense, Vasco e
Botafogo) se mostraram contrários aos alemães apenas por este motivo.
Principalmente na decisão contra a Argentina.
Schweinsteiger também vestiu a camisa rubro-negra: fornecedor é o mesmo da seleção alemã (Reprodução)
Se
as cores não bastassem, lá estava o carismático Lukas Podolski. Amigo
de André Santos desde os tempos de Arsenal, o alemão recebeu do lateral
uma camisa do Flamengo personalizada com o seu nome. Em seguida, o
próprio marketing do Rubro-Negro entrou em ação e presenteou Poldi,
Schweinsteiger e outros jogadores quando vieram ao Rio para enfrentar a
França. Os alemães bombardearam as redes sociais com pedidos de torcida
no Maracanã. Repetiram a dose antes da decisão contra a Argentina. Deu
certo.
– Estamos muito felizes com o retorno que isso traz para o
Flamengo. E também muito feliz com o carinho que o Podolski demonstrou
em todas essas oportunidades. É uma honra enorme para gente. O clube
está sendo divulgado no mundo inteiro, isso é bom para os
patrocinadores, para a marca. Tem muito estrangeiro que veio ao Brasil e
saiu daqui com a camisa do Fla. É um símbolo do país que foi divulgado
dessa forma por eles. A imagem exposta nas redes sociais é o que fica na
cabeça de todo mundo, e é sensacional o fato de ainda ser espontâneo –
afirmou Bruno Spindel, gerente de marketing do Flamengo, ainda sem
planos para realizar alguma ação com o camisa 10 alemão.
As
referências ao Brasil, claro, não param por aí. Schweinsteiger vestiu
também as camisas de Bahia e Grêmio – também cantou o hino do Tricolor
baiano com o goleiro Manuel Neuer num vídeo para o amigo Dante. Antes,
durante e depois do Mundial, a DFB utilizou as mídias sociais de
diversas maneiras para mostrar o quão confortável estava sua seleção. Em
outros casos, os jogadores trataram de nos lembrar com cenas
marcantes – como esquecer de Neuer e Schweini dançando "Lepo-Lepo" na
praia com o amigo brasileiro Tibúrcio? Ou de Podolski e o camisa 7, este
enrolado numa bandeira verde-amarela, torcendo na disputa de pênaltis
contra o Chile?
– Nós amamos o Brasil, como as pessoas vivem,
estamos felizes de ter feito parte desse torneio. O que queríamos
mostrar, desenvolver a segunda camisa, por exemplo, que parece a do
Flamengo. Há diversas coisas que desenvolvemos, comercialmente.
Produzimos filmes, fizemos muito para mostrar às pessoas como os alemães
são e como amam o Brasil – contou Patrick Kisko.
Schweinsteiger e Podolski torceram pelo Brasil na disputa de pênaltis contra o Chile (Foto: Reprodução)
Os
alemães foram além das palavras. Financiaram e idealizaram um projeto
social chamado “Sonhos de Crianças”, voltado obviamente para os menores
no Brasil – são 15 ao todo, com 500 mil euros investidos (cerca de R$
1,5 milhão). Em Santo André ficará o maior legado: será estabelecido até
a Copa da Rússia um fundo de reserva permanente para ajudar no
desenvolvimento dos jovens. A única escola municipal da vila de cerca de
800 moradores deverá receber cerca de 20 mil euros anuais (R$ 60 mil)
para, entre outros pontos, reformular a grade educacional. Bicicletas
também foram doadas para que se arrecade ainda mais.
– Nós
já temos ONGs que atuam na região. O objetivo agora é integrar, palavra
do momento. E com a ajuda da delegação, vamos conseguir realizar o
sonho de conseguir trazer as ONGs para dentro da escola e atender a
todas as crianças da comunidade. Através de um projeto de período
integral, vai dar início com dois dias, nesses dois dias elas terão
atividade extraclasse para desenvolver várias habilidades necessárias
para sua boa formação. Isso vai deixar para nós, educadores, a
possibilidade de realizar um sonho – disse Patrícia Farina, a diretora
da escola.
No dia 11 de junho, antes mesmo de a bola rolar para o
Mundial, seis jogadores da seleção visitaram o mesmo colégio – entre
eles estavam Schweinsteiger e Podolski, é claro. O encantamento dos
meninos ao até mesmo baterem uma bolinha com os futuros campeões mexeu
com o coração de todos.
– Foi um momento único na vida dessas
crianças. Quem vive numa comunidade isolada, quase uma ilha, imaginaria
receber uma seleção desse porte no povoado? Foi uma interação alegre,
simpática dos jogadores, que jogaram bola com as crianças, que agora não
param de falar disso. E também principalmente pela preocupação dos
alemães com a melhoria do ensino, em colaborar de alguma forma. Estamos
elaborando um projeto para implementar as ações que já são desenvolvidas
aqui.
Podolski e seus companheiros visitaram uma escola em Santo André que agora receberá investimento da DFB (Getty)
Nem mesmo a goleada por 7 a 1 sobre o Brasil na semifinal abalou as crianças.
Já tínhamos algumas crianças torcendo para a Alemanha porque conheceram
os jogadores pessoalmente e foi muito marcante. Eles jogavam bola no
intervalo e citavam os nomes dos jogadores. Cada um era um jogador da
Alemanha
Patrícia Farina, diretora da escola que recebeu os jogadores alemães
– No
dia seguinte já tinham esquecido. No dia do jogo enfeitaram toda a
escola, a torcida já estava dividida. Já tínhamos algumas crianças
torcendo para a Alemanha porque conheceram os jogadores pessoalmente e
foi muito marcante. Eles jogavam bola no intervalo e citavam os nomes
dos jogadores. Cada um era um jogador da Alemanha. Apesar do sofrimento
na grande derrota, em todos os momentos eles torceram pela seleção alemã
e estavam bem mais próximos. As crianças estavam até fugindo da escola
para assistir aos jogos da Alemanha. Tivemos que suspender as aulas no
dia dos jogos da Alemanha também, não só do Brasil – completou Patrícia.
Juntamente
com a organização do Campo Bahia, a Federação também bancou a reforma
de um campo de futebol do vilarejo. A areia está sendo substituída por
uma grama de primeira linha, a mesma utilizada no Centro de Treinamento
em que realizaram as atividades durante a Copa. A previsão de conclusão é
até o fim do mês. No fim da estadia, a DFB doou 10 mil euros (R$ 30
mil) para índios da Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha comprarem um
veículo.
– Queremos deixar um legado que tenha a ver com o
aprendizado, mas também voltado para o esporte. Estamos muito felizes em
ter participado de tudo isso – contou o gerente Oliver Bierhoff, que
posou com os índios e o cheque na despedida de Santa Cruz Cabrália, na
última sexta-feira.
Índios receberam 10 mil euros dos alemães para comprarem um carro (Foto: Sergio Gandolphi)
Os
alemães também esperam capitalizar. A concentração do Campo Bahia será
colocada à venda – Christian Hirmer, do ramo imobiliário, foi o
principal responsável pela construção do condomínio de 15 casas de dois
andares, 65 acomodações e 400 metros quadrados –, enquanto o CT ficará
com empresários alemães, que agora tentarão manter o alto nível de
estrutura e atrair clubes brasileiros para pré-temporada. Há a intenção
de utilizar as instalações também nos Jogos Olímpicos de 2016, atraindo
quem estiver envolvido nas competições de vela.
Campinho em Santo André está sendo reformado (EFE)
Para
quem vive no povoado, a expectativa é de hospedar novos alemães nos
próximos meses. Santa Cruz Cabrália tornou-se uma cidade ainda mais
conhecida graças ao título da seleção e pode se transformar num cobiçado
ponto turístico – por enquanto, Santo André é vista como um recanto
atraente e dos mais discretos do sul da Bahia. Na Alemanha, o povo se
mostrou curioso ao ver as belas imagens veiculadas pelas TVs do país.
–
Santo André era um lugar totalmente desconhecido, aí de repente vem a
Alemanha e nos dá essa oportunidade. A Alemanha escolheu Santo André e
deu vida a esse lugar, foi um privilégio para nós receber os alemães
aqui durante quase 40 dias. A Copa foi boa para todos e melhor ainda
para Santo André – opinou a comerciante Zete Moreira, dona de um
restaurante.
– A seleção vai sair daqui nos deixando com o
coração dividido. Não só a pureza deles, como também essa integração
entre alemães e o povo baiano, não só indígenas. Foi muito bom para que
pudéssemos aprender com eles e vice-versa. Achei que fossem pessoas
frias, sem coração praticamente. Pelo contrário. Eles receberam os
indígenas muito bem. Deram aula de ensino para nós, e assim sai o legado
daqui. A saudade de estar diretamente com eles, e que possam mais vezes
vir visitar a nossa região e a nossa aldeia no extremo sul da Bahia –
encerrou Zeca Pataxó, cacique da Aldeia de Coroa Vermelha.
Campo Bahia, condomínio que recebeu a seleção durante a Copa, será colocado à venda (Foto: Divulgação)