Há 20 anos, Ricardo Rocha escreveu
o mais improvável enredo do tetra
Estiramento na virilha resume Copa do xerife dentro de campo ao primeiro jogo,
mas não impede seu protagonismo nos bastidores e o posterior reconhecimento
Por Lucas FitipaldiRecife
Romário entrou para a galeria dos gênios.
Ao
lado do Baixinho, Bebeto brilhou. Dunga virou símbolo de raça. Taffarel
salvou a pátria. Branco eternizou uma cobrança de falta. Jorginho, um
cruzamento. Ricardo Rocha pouco jogou.
Mas é o pernambucano quem
primeiro ergue e beija a taça no desembarque dos tetracampeões em solo
brasileiro. E é no Recife, terra do ex-zagueiro, onde a aeronave que
conduzia a seleção fez o primeiro pouso. A relação entre a capital
pernambucana, o xerife e a geração do tetra é um capítulo à parte no
enredo da conquista que completa 20 anos nesta quinta-feira.
Duas
décadas depois, o reconhecimento à importância de Ricardo Rocha naquela
campanha segue intacto. É como se ele jamais tivesse sofrido a lesão,
ainda na estreia, que o tirou das outras seis partidas. No momento mais
delicado da carreira, o zagueiro assimilou a frustração. E como um
autêntico líder, contribuiu, mesmo fora de campo, para que em 17 de
julho de 1994 aquela geração saísse consagrada do estádio Rose Bowl, em
Los Angeles, após a angústia dos pênaltis contra a Itália.
Então
titular, Ricardo sofreu um estiramento na virilha pouco antes dos 30
minutos do segundo tempo do jogo contra a Rússia. Com o semblante
abatido, deixou o campo amparado. A experiência, aos 30 anos, foi
suficiente para prever o resultado do exame no dia seguinte. Apesar de
não ser uma lesão grave, o tempo de recuperação não era compatível com a
urgência de um Mundial.
- Além de ser campeão, eu pensava em
ser o melhor zagueiro da Copa. Porque me preparei para isso. Eu sabia
que era a minha última Copa. E fiquei muito mal do dia da lesão até o
outro dia.
Ricardo Rocha ficou marcado pelas histórias do tetra em 1994 (Imagem: Cláudio Roberto)
O
xará Ricardo Gomes, companheiro de zaga em quase todo o período de
preparação, havia sido cortado por lesão após um dos últimos amistosos,
contra El Salvador, já nos Estados Unidos.
- Éramos eu e
Márcio Santos no quarto. Ele não viu, mas quando chegamos ao hotel, fui
tomar banho e fiquei um bom tempo sozinho debaixo do chuveiro. Chorei
muito naquele dia. Pensei: "Caramba, me preparei tanto…" Passa um filme
na cabeça. A derrota em 90, aquela festa no Recife...
Ricardo
faz parte de uma geração que aprendeu a vencer na dor. Foi um dos
remanescentes do fracasso na Copa da Itália, quatro anos antes.O time
comandado por Sebastião Lazaroni, para muitos, encabeça a lista das
piores seleções do Brasil nas Copas. Do grupo tetracampeão, Taffarel,
Jorginho, Ricardo Rocha, Dunga, Branco e Müller foram titulares na
derrota para a Argentina. Ricardo Rocha foi o último dos quatro
marcadores que tentou parar Maradona no lance genial do gol de Caniggia.
Mazinho, Bebeto e Romário viram tudo do banco.
- Ficamos
muito marcados. Levou um tempo para voltarmos a vestir a camisa da
Seleção. O retorno aconteceu aos pouquinhos. Eu, Branco e Mazinho fomos
os primeiros a voltar. Falcão nos convocou para a Copa América de 1991.
Depois a gente foi trazendo os outros - recorda.
Não
bastasse o fardo de 1990 sobre aqueles jogadores, nas Eliminatórias, em
1993, a derrota para a Bolívia, em La Paz, elevou o nível das cobranças
a um patamar quase insuportável. Era o segundo jogo da campanha - após o
empate sem gols com o Equador, em Quito - e o primeiro revés da seleção
em 40 anos nas Eliminatórias.
A mídia alarmou a chance de o
Brasil ficar fora de um Mundial pela primeira vez. A torcida comprou a
ideia e massacrou. A seleção e sobretudo o técnico Carlos Alberto
Parreira eram cada vez mais contestados. Foi preciso dar as mãos para
reverter o cenário. Literalmente. No jogo de volta contra os bolivianos,
no Recife, Ricardo Rocha sugeriu que o time entrasse em campo de
maneira diferente. As mãos dadas virariam o maior símbolo daquele grupo e
seria repetido até a final da Copa. Convocado, o povo do Recife abraçou
o conterrâneo e toda a seleção. A goleada por 6 a 0 virou um marco.
Resgatou a autoestima da equipe, que carimbou o passaporte para o
Mundial dos Estados Unidos com uma exibição de gala de Romário no
Maracanã, contra o Uruguai. Todos aqueles momentos fervilhavam na cabeça
do xerife embaixo do chuveiro.
No
dia seguinte à lesão, logo após tomar conhecimento do resultado do
exame de imagem - já esperado -, Ricardo Rocha recebeu a visita de
Parreira, Zagallo, então coordenador técnico, e do médico Lídio Toledo. A
notícia desta vez era boa. Ele não seria cortado. Os três ressaltaram a
importância de sua permanência para os demais jogadores no decorrer da
Copa. Pouco depois, foi a vez dos companheiros se dirigirem ao quarto do
xerife para dar uma força. De um dia para o outro, o sentimento mudou
completamente.
Após a conquista, jogadores homenageiam Ayrton Senna, que morreu dois meses antes (Foto: Reprodução)
-
Pensei: "Eu não posso deixar essa turma triste. Não dá." Eles me
aceitaram. Porque poderia haver um corte. Não posso decepcionar esse
grupo, principalmente como ser humano. Se eles já tinham confiança em
mim, agora vão ter mais. Decidi que iria amanhecer diferente no dia
seguinte. Eles sabiam que eu tinha ido para a Copa jogar, buscar o
título com eles, querendo ser o melhor zagueiro, mas aquele cara,
naquele dia, iria despertar muito mais feliz e agradecido.
Na
prática, Ricardo passou a ser mais um integrante da comissão técnica
que propriamente jogador. Ao lado do comedido Parreira, era ele quem
elevava o tom de voz no vestiário e à beira
do campo.
-Eu
puxava a reza, ajudava na preleção, cobrava, alertava, pegava muito no
pé dos zagueiros, mas também descontraía o
ambiente. As brincadeiras se intensificaram justamente em um momento
psicológico
ruim, que foi a lesão. Foi uma forma de dar a volta por cima. Às vezes
eu olhava, eles não viam, mas eu ficava de longe observando, notando que
estava mais tenso, aí eu ia lá brincava... Eu tinha um controle ali.
Eles não sabiam
mas eu tinha dentro de mim o controle de cada jogador.
04
cogitou-se jogar a final
Jorginho em disputa com italiano durante a final. Brasil só venceria nos pênaltis (Foto: Getty Images)
Ainda
assim, mesmo praticamente fora de combate, o xerife teve a escalação
cogitada em duas ocasiões. Chegou a participar de um coletivo às
vésperas do jogo contra os Estados Unidos, pelas oitavas de final, mas
voltou a sentir durante o treino. Depois, a três dias da grande final,
Parreira foi ao seu encontro.
- Aldair sentiu um
probleminha. O professor veio falar comigo para saber das minhas
possibilidades de jogar a final. Só fiz um pedido: que me avisasse com
certa antecedência. Precisava me preparar psicologicamente. Sabia que
não seria fácil entrar naquele jogo sem estar 100%, mas me coloquei à
disposição.
Ricardo então
procurou Aldair. O titular, que
o substituiu desde a estreia, garantiu que o desconforto não seria
suficiente para tirá-lo da final. Obviamente, o xerife não insistiu.
Além do receio natural pela falta de ritmo de jogo, prevaleceu o
respeito ao companheiro. Rocha porém ajudou até o fim. À sua maneira.
- É tudo aquilo que todo mundo já sabe.
Muita alegria, piada, brincadeira, seriedade. Eu sabia até
onde podia ir a brincadeira e a seriedade. Antes dos jogos, não deixava transparecer aquela
coisa. Será que vai dar pra ganhar? Não deixava. O discurso era um
só: nós vamos ganhar. Nós vamos passar. Nós vamos ser campeões. Aí
botava uma música, brincava, chamava um, chamava outro. O vestiário me ensinou muito ao longo da vida.