Garçom lutador supera perrengues para estrear no UFC: 'Não foi fácil'
Com apelido de cinema, cearense José Maria 'No Chance'
trabalha desde os 7 anos, ainda não consegue se sustentar só com o MMA e
mora em comunidade
Por Adriano Albuquerque e Ivan Raupp
Rio de Janeiro
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O peso-mosca José Maria Tomé recebeu o chamado do UFC para substituir o
lesionado inglês Phil Harris contra o brasileiro John Lineker no card
do Rio de Janeiro a apenas duas semanas do evento, mas não seria nem um
pouco justo dizer que a oportunidade caiu no colo do lutador cearense.
Aliás, nada foi fácil na vida dele. Além da história humilde e repleta
de batalhas, José Maria carrega consigo o fato incomum, pelo menos no
Ultimate, de não se dedicar somente ao MMA. Para conseguir se sustentar,
trabalha oito horas ou mais por dia como garçom em uma franquia de
croissant no bairro de Copacabana. Esta semana, ele pediu licença para
poder cumprir com as obrigações da organização, mas só por alguns dias.
Nascido na zona rural de Alto Santo, cidade com cerca de 20 mil
habitantes no interior do Ceará, José Maria está prestes a se tornar o
primeiro lutador da equipe Renovação Fight Team (RFT) a competir no UFC.
O hoje garçom de 31 anos e morador do Morro dos Tabajaras já havia
trabalhado antes como padeiro e barman no Nordeste, e em uma
distribuidora de peixes depois que saiu de lá para tentar a vida no Rio.
Deixou a esposa, Érica, e a filha, Dominique, em Limoeiro do Norte-CE e
mora sozinho: lava, passa, cozinha e ainda manda dinheiro para a
família.
José Maria 'No Chance' no hotel em que lutadores estão hospedados no Rio (Foto: Ivan Raupp)
- Eu sabia que não seria fácil, e não foi. Eu cheguei e encontrei as
pessoas certas: a Dona Andrea e a Dona Sônia, que são minhas patroas, o
mestre Cromado, o Marcelo Brigadeiro. Foi Deus que colocou essas pessoas
no meu caminho. Bati na porta de algumas academias, mas não fui bem
recebido. Prefiro não falar nomes. Tinha que pagar mensalidade, mas eu
não estava trabalhando e não tinha condição. Então, fui bem recebido na
RFT, indicado pelo Brigadeiro. Comecei um trabalho lá e evoluí bastante -
disse, em entrevista ao
Combate.com.
O trabalho duro sempre andou junto de José Maria. Por causa da cultura
da família e das necessidades financeiras, ele começou cedo no batente:
- Eu trabalho desde que tinha 7 anos de idade. Minha mãe trabalhava num
serviço braçal na zona rural, e eu tinha que ir com a minha família. Ia
a família toda para o campo trabalhar. A gente juntava lenha, colhia
feijão, algodão, milho, capinava. Eu tinha que trabalhar. Minha família
tinha essa cultura. Se com 7 ou 8 anos você não quisesse trabalhar,
seria preguiçoso quando crescesse. Isso era motivo para levar uma boa
surra.
Bati na porta de algumas academias, mas não fui bem recebido. Prefiro não falar nomes. Tinha que pagar mensalidade,
mas eu não estava trabalhando
e não tinha condição"
José Maria 'No Chance'
Na verdade, José Maria não é ninguém no MMA nacional. O conhecido é o
"Sem Chance", apelido que ganhou por ser parecido com o ator Gero
Camilo, que interpretou o personagem de mesma alcunha no filme
Carandiru. Em uma estratégia de marketing para ficar mais conhecido nos
EUA, maior mercado do esporte no mundo, virou "No Chance".
- O apelido é bem interessante. É porque dizem que eu pareço com o
personagem do filme Carandiru. Dizem, mas eu não acho (risos). Eu me
acho mais parecido com o Adauto Chupetinha (personagem do ator Juliano
Cazarré na novela Avenida Brasil, da TV Globo). Brinco sempre, mas
aceitei o apelido porque sempre que eu ia lutar nos campeonatos do
interior, as pessoas não me conheciam e achavam que eu era sem chance
(de vencer a luta). Eu ia lá e vencia. As pessoas chegavam e me falavam:
"Cara, virei seu fã. Não achei que você fosse fazer isso, mas você foi
lá e lutou muito bem". Achei que o apelido pegaria, e pegou. Aí depois o
meu empresário, Marcelo Brigadeiro, disse: "Não vai ser Sem Chance. Vai
ser No Chance". Aí eu deixei No Chance mesmo (risos).
José Maria Virou fã de lutas por causa dos filmes de Bruce Lee e
Jean-Claude Van Damme. Saiu de Alto Santo com 16 anos e foi morar na
cidade vizinha, São João de Jaguaribe, onde foi procurar melhores opções
de trabalho e acabou conhecendo a capoeira. De lá, se mudou para
Limoeiro do Norte e conheceu a luta livre. Com três meses de treino,
estreou no MMA.
John Lineker e José Maria 'No Chance' vão se
enfrentar no UFC Rio 4 (Foto: Editoria de Arte)
- Quando eu era criança, fazia muitos combates de terreiro mesmo, como
se diz, com meus primos. Toda hora rolava uma porrada. Era à vera mesmo.
Já estava no meu sangue. Meu avô sempre falava assim: "O Zé, quando
crescer, vai bater em todo mundo". Hoje ele é falecido, mas graças a
Deus está se cumprindo a profecia dele - relembra.
As dificuldades por que passou na infância e na adolescência não
permitiram que o "No Chance" se formasse no colégio. A falta de dinheiro
era o maior empecilho:
- Isso era uma dificuldade para a gente. Morei até meus 16 anos no
interior. Tinha muita dificuldade com colégio e com estudo. Às vezes
você começava o ano, mas não tinha verba para terminá-lo. Então, você
não passava de ano. Muitas pessoas se assustam quando eu digo, mas eu
passei para a primeira série com 13 anos de idade. Foi exatamente por
conta dessa dificuldade. Cheguei a cursar o primeiro ano do Ensino
Médio. Depois parei.
No Nordeste, "No Chance" trabalhou como padeiro, barman, entre outras
funções. Mas foi em busca de mais estrutura nos treinos de MMA que ele
decidiu tentar a sorte no Rio de Janeiro, em 2010. Na Cidade
Maravilhosa, primeiro trabalhou em uma distribuidora de peixe, depois
virou garçom, trabalho que ainda mantém. Antes de conseguir um trabalho,
viu um anúncio do empresário Marcelo Brigadeiro e enxergou a
oportunidade que estava precisando. Ele relembra dos tempos de peixe com
bom humor:
Minha família tinha essa cultura. Se com 7 ou 8 anos você não quisesse trabalhar, seria preguiçoso quando crescesse.
Isso era motivo para levar uma
boa surra"
Sobre trabalhar desde cedo
- Eu acordava às 4h, 5h da manhã e já entrava em câmara fria. Eu
entrava nesse horário e não tinha hora para sair. Às vezes eu saía às
19h. Quando saía, não conseguia treinar no horário dos profissionais na
RFT. Mesmo assim, o mestre entendia. Às vezes eu ia direto para a
academia, fedendo a peixe dentro do metrô. Na academia os colegas
reclamavam (risos). Eu chegava em casa às 23h, para ainda jantar, tomar
banho e poder acordar no outro dia às 4h, 5h de novo.
Se a rotina de José Maria é pesada hoje, morando e trabalhando em
Copacabana e treinando em Botafogo, antes era ainda mais, quando morava
em São Cristóvão e enfrentava trânsito diariamente. Em compensação, a
mudança lhe deu 300 degraus de "presente":
- Tenho que me dividir. Eu mudei de endereço devido ao trânsito. Antes
eu morava em São Cristóvão, pegava ônibus, e o trânsito era muito
intenso. Aí fui morar no Morro dos Tabajaras (em Copacabana), lá no pico
mesmo. Tem que subir três escadarias grandonas. Eu acordo de manhã e
vou de bicicleta para a academia, porque o treino começa às 10h. Treino
até 13h30m, às vezes até 14h. O treino lá na RFT é bem puxado. Nisso tem
tempo para fazer musculação e tomar banho. No trabalho eu chego às
14h30m, às vezes com um pouco de atraso, aí levo um puxãozinho de
orelha. Vai até às 23h, 23h30m. É muito duro. Quando chego no começo da
escadaria, já estou muito cansado. Quando chego em casa, fico mais
cansado ainda. Acho que são uns 300 degraus.
Os constantes atrasos, que agora não acontecem mais, geraram até protestos dos demais funcionários da franquia de croissants:
- Às vezes chegavam reclamando: "Pô, o Zé Maria chegou atrasado de
novo". E elas (as donas) não podem me proteger. Aconteceu isso durante
muito tempo. Teve uma época em que eu estava chegando atrasado todo dia.
Aí os outros funcionários começacam a chegar atrasados também, falavam
que eu era "peixe". Falaram para o mestre, e ele disse: "Acabou. Agora
você vai ter que sair cedo e chegar na hora no seu trabalho".
A meta de José Maria de entrar no UFC foi alcançada. A próxima é poder
se dedicar 100% ao MMA, sem precisar dividir seu tempo com outro
trabalho. Para isso, precisa de patrocínio fixo:
- Não consegui ainda, mas já tenho em vista alguns patrocínios. O meu
objetivo é conseguir isso, conseguir estrutura, alguém que possa me
patrocinar para eu poder me manter e sustentar minha posição no Rio de
Janeiro para só treinar, quem sabe poder trazer minha família para cá.
Quero dedicar essas 8 horas de trabalho que tenho de prestar para outra
empresa para o Sem Chance, para eu poder descansar.
José Maria com seu principal treinador, Márcio Cromado, da RFT (Foto: Ivan Raupp)
Esta semana não é apenas a da estreia do "Sem Chance" no octógono. Ele
também vai ganhar uma boa visibilidade ao participar da coletiva de
imprensa do evento e dos treinos abertos, o que não é usual para alguém
que acabou de chegar. Ele não vê problema em viver um mundo totalmente
diferente a partir de agora, mesmo que seja de certa forma intimidador:
- Se você for comparar ao nível de estrutura nacional, realmente
assusta um pouco. Tenho colegas que lutam em eventos grandes, e eles
falam dessa estrutura. Então, eu já estava um pouco informado disso.
Assusta, mas pelo lado positivo, né? Graças a Deus a gente recebe um bom
tratamento. Eu, que sou do Nordeste, hoje me sinto realizado em saber
que a empresa da qual faço parte me dá várias regalias que eu nunca
tive.
Quanto ao fato de ter aceitado a luta em cima da hora, José Maria acha
normal. Primeiro, porque já vinha se preparando para competir no Limo
Fight, dia 31 de julho. Segundo, porque no Nordeste era muito pior, como
disse o próprio:
- Já estou acostumado. Já aconteceu de eu ir assistir a um evento e me
chamarem para lutar na hora. Já aconteceu de fazer duas lutas na mesma
semana. Lá no Nordeste era assim.
Quero chegar para fazer história dentro do UFC. Se eu não conseguir me
encaixar no UFC, serei um homem frustrado também, assim como se eu
tivesse abandonado a carreira"
Mostrando não estar satisfeito ainda
Assim como nos perrengues que passou na vida, a estreia de "No Chance"
promete ser complicada. O adversário, John Lineker, tem apenas 23 anos e
um poder de nocaute incomum para a categoria até 57kg, e é uma promessa
de futuro candidato ao cinturão:
- Estou esperando uma luta boa e bem movimentada. A gente traçou a
estratégia. Estou com a cabeça boa. Todo mundo está achando que vou
sentir a pressão do evento, do card principal. Estou focado, fazendo o
que sei de melhor, o que mais gosto de fazer na minha vida. É isso, bola
para a frente.
Mesmo com um cartel de 33 vitórias, três derrotas e duas lutas sem
resultado (no contest), além de uma estreia por vir no UFC, José Maria
ainda não se considera satisfeito e quer mais. Bem mais. Inconformismo
típico de um lutador da vida, batalhador. De um vencedor:
- Com certeza sou um vencedor. No começo da minha carreira, em momento
algum pensei em desistir. Mas muitas vezes vinha o pedido para eu
desistir. A minha esposa nunca me apoiou no esporte. Pelo contrário,
sempre foi contra. Meus irmãos também começaram no MMA, mas desistiram.
Me considero vencedor, mas não realizado ainda. Quero chegar para fazer
história dentro do UFC. Se eu não conseguir me encaixar no UFC, serei um
homem frustrado também, assim como se eu tivesse abandonado a carreira -
encerrou.
O UFC 163, ou UFC Rio 4, será realizado neste sábado, a partir das
19h30m (de Brasília), com transmissão ao vivo do canal Combate. O
Combate.com fará a cobertura de todos os detalhes em Tempo Real. No dia anterior, os dois farão a transmissão ao vivo da pesagem, às 16h.
UFC 163 (UFC Rio 4)
3 de agosto de 2013, no Rio de Janeiro
CARD PRINCIPAL
José Aldo x Chan Sung Jung
Lyoto Machida x Phil Davis
Cezar Mutante x Thiago Marreta
Thales Leites x Tom Watson
John Lineker x José Maria No Chance
CARD PRELIMINAR
Vinny Magalhães x Anthony Perosh
Amanda Nunes x Sheila Gaff
Serginho Moraes x Neil Magny
Ian McCall x Iliarde Santos
Rani Yahya x Josh Clopton
Ednaldo Lula x Francimar Bodão
Viscardi Andrade x Bristol Marunde