domingo, 7 de novembro de 2010

Deca mundial, Slater se reinventa movido a diversão, dor e desafios

Embaixador do surfe, americano parou, voltou, pensou em se aposentar de novo, mas mostra que ser campeão, mesmo aos 38 anos, ainda parece fácil

O menino louro e cabeludo da Flórida há tempos raspou a cabeça. O corpo, atlético desde aquela época, hoje não entrega os 38 anos. Conheceu e venceu alguns de seus ídolos. Viu-os se aposentar. Inspirou novos campeões. Viu o maior deles, Andy Irons, morrer aos 32 anos. E Kelly Slater continua lá, no topo. São duas décadas entre os melhores e, agora, dez títulos mundiais. O americano parece fazer da competição um antídoto contra a ação do tempo. Precisa de doses do Circuito Mundial. E o surfe, sim, precisa dele.
- Eu me sinto como um embaixador do surfe, feliz por ter esse papel - disse, certa vez, ao jornal americano “New York Times”.
Kelly Slater criançaKelly Slater, o baixinho de short verde (terceiro da esq. para a dir.) Foto: Arquivo Pessoal de Judy Slater
Slater é obcecado. O cérebro dentro da careca que ao longe se enxerga não para de pensar em números, ângulos, formas, medidas. Em casa, vislumbra novas pranchas, competições - quer levar campeonatos para piscinas de ondas. Quando veste a camiseta de lycra e caminha em direção ao mar, a bateria ganha ar de jogo de xadrez. Traça jogadas, projeta manobras, desenha linhas de surfe. Improvisa, também. E conta com a sorte, claro. Quando algo não se encaixa, não se conforma. Sim, Kelly Slater é movido a desafios.
Kelly Slater Jeffreys Bay arquivoSlater, 38 anos e 10 títulos mundiais (Foto: Getty )
- Quando comecei, vi claramente, pelo que os outros faziam, como seria fácil vencer o Circuito Mundial - escreveu no livro "Por amor".
Ele nunca gostou de perder nem pingue-pongue, costumam dizer os amigos. E foi acumulando vitórias desde as primeiras competições. Era uma época perturbada na família Slater. Steve e Judy viviam com dinheiro contado em Cocoa Beach. O pai, dono de uma loja de pesca, tinha problemas com bebida. Caía bêbado pelas ruas. Um dia, em 1983, Judy o expulsou de casa e cuidou sozinha de Kelly, então com 11 anos, Sean, 14, e Stephen, 5.
Judy raramente consegue deixar a casa para ver o filho. Fica na internet, postando fotos antigas. Diverte-se lembrando dos tempos em que o pequeno Robert Kelly era um aspirante a surfista. Hoje, há uma rua com o nome dele na cidade-natal: “Slater way”.

- Se a competição terminasse no domingo, ela teria vindo. Não deu tempo - disse o filho, no pódio em Porto Rico, no sábado, logo após a consagração.
Kelly Slater mãe Judy Kelly e a mãe, Judy, em cerimônia de premiação
após o sétimo título mundial (Foto: ASP)
O pai, com quem o surfista tinha uma relação complicada, viu, sempre de longe, os títulos mundiais. O primeiro deles, em 1992, conquistado no Rio de Janeiro. Slater perdeu o de 1993, mas depois engatou uma série invicta de 1994 a 1998. Foi aí que, assim como o astro do basquete Michael Jordan, resolveu dar um tempo. Passava o tempo surfando aqui e acolá e tocando violão com a banda “Surfers”.
Durante as férias, escolhia a dedo os convites que recebia. Um deles, para o Eddie Aikau, mais tradicional competição de ondas grandes, em homenagem a um salva-vidas que morreu no Havaí. Encarou, na remada, paredões em Waimea Bay e faturou o título, raridade entre os surfistas do Circuito Mundial. Slater adora ondas gigantes. Sim, ele é movido a desafios.
- Sou um dos caras mais sortudos que você pode conhecer. Sou pago para surfar - disse, também no livro, lançado há dois anos.
No fim de 2000, Steve, diagnosticado com câncer, foi ver o filho em um campeonato na França. A doença os uniu. Kelly ajudou no tratamento... até abril de 2002. A morte atingiu a família tão forte quanto uma onda na cabeça. Diante de uma encruzilhada, Slater remou na direção que mais conhecia: a das competições. Voltou ao Mundial, após três anos.
O americano achou que tinha superado a perda, mas, um ano depois, longe da Flórida, desabou. Foi após a final em Pipeline, etapa que poderia lhe dar a ele o sétimo título mundial. Andy Irons, o maior rival até hoje, o derrotou em uma das melhores baterias da história. Kelly chorou, com um tanto de vergonha. Queria ter dedicado ao pai a taça, o retorno triunfal. O jeito era esperar.
Em 2004, na cidade de Imbituba (SC), Kelly viu o terceiro triunfo seguido de Andy, agora tricampeão do mundo. Sim, o havaiano foi - até a morte - seu o maior adversário.
Kelly já estava com 32 anos e as dúvidas sobre a carreira voltaram a bater na porta. Mas ele as empurrou para o lado e seguiu remando. Foi recompensado com um início de temporada arrasador em 2005 e, em maio, conseguiu um feito inédito na história do surfe. Duas notas 10,00 em uma final. Onde? Na onda mais perigosa do mundo, Teahupoo, no Taiti.
Surfe Kelly Slater Mundial Taiti 2005No Taiti, duas notas 10 e surfe com uma lata de
cerveja na boca (Foto: ASP/Divulgação)
Comemorou com cerveja - pegou um tubo com uma latinha na boca. E, meses depois, de volta a Imbituba, enfim pôde beber na taça que tanto queria. Após um jejum de seis anos, sim, Slater era campeão novamente. Heptacampeão.
O título o alçou novamente ao centro do noticiário e, junto, vieram as manchetes sobre sua vida pessoal. Na etapa de encerramento do calendário, no Havaí, um sem graça Slater tentava esconder, em vão, o namoro com a top model Gisele Bündchen.
Sim, ele tem vergonha de algumas situações. Se pudesse voltar no tempo, não teria participado do seriado “Baywatch”, já disse. Foi lá que ele conheceu a primeira namorada famosa, Pamela Anderson. Com ela, os prós e contras de virar uma celebridade não só no mundo do surfe. Dentro d’água, era uma máquina competitiva. Fora, isolava-se para fugir da imprensa. Mas acabou, de certa forma, deixando um pouco de lado, também, por tabela, a família e os amigos.
Pamela, hoje, é uma amiga, assim como Gisele. Há três anos, Slater namora uma californiana 15 anos mais jovem, Kalani. Ainda não pensa, por enquanto, em filhos. Taylor, filha com uma antiga namorada, está com 14 anos e mora com a mãe e o padastro. Não gosta muito da ideia de ter um pai famoso.
- Minha filha falou: 'Não gosto que as pessoas saibam quem você é' - contou, em 2007.
Kelly Slater ImbitubaSlater tenta passar despercebido em Imbituba
(Foto: Globoesporte.com)
Slater não atendeu ao pedido da filha. De lá para cá, conquistou outros dois títulos mundiais. Está longe de passar despercebido. Às vezes, tenta de esconder a careca, sob o capuz do casaco, só para ter um mínimo momento de privacidade. Mas, sempre educado, não gosta de dizer não.
- As pessoas pedem uma foto, um boné, pedem para fazer uma pergunta. Mas nunca é só uma... – disse este ano, após a final da etapa de Imbituba, em que perdeu para o brasileiro Jadson André.
Por vezes, Slater se disse sufocado, querendo se aposentar. Cansado da rotina de viagens, de baterias, de assédio, de flashs sobre seu rosto. Em 2007, ao perder o título mundial para Mick Fanning - onde? Em Imbituba - , quase fechou a conta. Mas bastou recuperar o fôlego no ano seguinte e arrematar o nono título mundial, por antecipação, para voltar a se dar conta de que, sim, vencer é fácil.
Kelly Slater ImbitubaSlater ajuda a tirar uma foto dele mesmo depois
de vencer uma bateria(Foto: ASP)
Mesmo depois de 20 anos no Circuito Mundial, vencer ainda é fácil. Percebeu que, aos 38 anos, poderia sugar dos adversários a motivação que às vezes lhe faltava. Mudou, passou a arriscar - e acertar, claro - aéreos e entrou de cabeça em um estilo antes dominado pela nova geração do surfe. Sim, Slater é movido a desafios.
Em Portugal, o australiano Chris Davidson, depois de vê-lo voar nas ondas de Peniche, conformou-se com a derrota. Sentado no outside, levou as mãos à cabeça e bateu continência a Mr. Slater. Davidson é apenas mais um. Fez o que todos, ao menos em em algum momento da vida, tiveram vontade de fazer.
Mundial de surfe Kelly Slater decacampeão Porto RicoDuas mãos cheias de títulos (Foto: ASP)
Nesta temporada, pela primeira vez, um surfista muito mais novo ficou na cola de Slater: Jordy Smith, 22 anos, voador, grandalhão e bom de embaixadinhas. O sul-africano deu trabalho. Mas é apenas mais um.

Seu maior adversário, Andy Irons, não viveu para vê-lo conquistar o deca. Morreu na terça-feira. Slater chorou e dedicou o título a ele. Um título que, sempre dizem, pode ser o último de sua carreira.
Vinte anos anos na estrada, dez títulos, 45 vitórias em etapas. Talvez Slater pense em parar de novo. Talvez pense em ter filhos, e seus filhos, assim como Taylor, talvez queiram um pai desconhecido. Talvez. Mas Slater, como se sabe, é movido a desafios.

- Ainda não sei. Não pensei muito sobre isso (se aposentar) - disse, com o troféu nas mãos.

Veja, em imagens, como foi a conquista do decacampeonato mundial de Slater.
Kelly Slater decacampeão mundial Porto Rico

Nenhum comentário:

Postar um comentário