segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Brasil Afora: 'Canário', de Irmã Dulce e Jorge Amado, sonha voar em 2014

Aurinegro, Ypiranga, o 'Mais Querido', é o terceiro clube da Bahia em títulos estaduais e quer aproveitar escolha de CT para Copa para renascer

Por Eric Luis Carvalho Salvador
As palavras foram escritas por ninguém menos do que o saudoso Jorge Amado, um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros de todos os tempos: "Outros clubes do futebol baiano podem ser mais ricos, mais prósperos, mais badalados pela imprensa, donos até de maior torcida e de maior número de títulos recentes. Nenhum de tão gloriosa tradição quanto o Esporte Clube Ypiranga. Se o visitante tiver de escolher um clube de futebol, escolha o Ypiranga."
Jorge foi, sem dúvida, ao lado da saudosa Irmã Dulce, o mais ilustre torcedor do Ypiranga, um dos clubes mais tradicionais do futebol baiano. O “Mais Querido” (ou "Canário"), como se tornou carinhosamente conhecido, foi fundado em 1906 e, em pouco tempo, tornou-se a maior força do futebol da Bahia. Com espírito de revolucionário, o Ypiranga foi o primeiro clube baiano a aceitar negros e pobres em seu elenco. Desta forma, logo ganhou o status de time do povo e passou a ter uma legião de torcedores. Nos anos de 1920 e 1930, o time amarelo e preto virou a maior força do futebol da Bahia.
No entanto, depois de amargar resultados ruins na maior parte do século 20, o Ypiranga viu a dupla Ba-Vi assumir o posto de protagonistas no futebol do estado. Ainda assim, o Mais Querido é o terceiro com mais títulos estaduais na Bahia. Para se ter uma ideia da força do Ypiranga em solo baiano, apenas em 1989, quando chegou ao jejum de 38 anos sem levantar uma taça, o Canário, com dez conquistas em estaduais, foi passado pelo Vitória em número de títulos.
homenagem do Ypiranga a irmã dulce (Foto: Reprodução / TV Bahia)Neste ano, time entrou em campo com faixa em homenagem a Irmã Dulce (Foto: Reprodução / TV Bahia)
Copa de 2014: chance de voos altos para o Canário
Quase cem anos após a sua fundação, o Ypiranga tenta ressurgir das cinzas, após anos agonizando, e vê na Copa do Mundo de 2014 uma chance de recuperar as glórias de outrora. A Vila Canária foi o único centro de treinamento de Salvador selecionado para a segunda etapa da análise feita pela Fifa para a escolha de CTs para o Mundial.
- Nós nos inscrevemos na primeira janela para ser um Centro de Treinamento de Seleções (CTS) e fomos selecionados para a segunda fase, como único CTS de Salvador. O CTS é diferente dos COT, que são os Centros Oficiais de Treinamento - neste caso os de Salvador são o Barradão e Pituaçu. Os CTS são os locais que as seleções usam para ambientação, chegando praticamente um mês antes do Mundial. No entanto, sabemos que, para isso, nosso CT precisa ser reformado e estamos em busca dessas obras, até porque temos interesse em participar da Copa. E o clube ainda será beneficiado com as melhorias – afirmou Emerson Ferretti, vice-presidente do clube.
Ex-goleiro, Ferretti é gaúcho de Porto Alegre. Ele começou a carreira no Grêmio, passou pelo Flamengo, Seleção Brasileira sub-20 e foi campeão da Copa do Brasil de 1999 pelo Juventude. No ano de 2000 chegou ao Bahia, time do qual virou ídolo. Após seis anos e títulos estaduais e regionais no clube tricolor, Ferretti se tornou o goleiro que mais vezes vestiu a camisa 1 do Bahia.
Quando assumimos o Ypiranga, em 2009, o clube estava perdendo o maior bem, que é a Vila Canária"
Emerson Ferreti
Em 2006, o goleiro se transferiu para o Vitória e teve participação decisiva no acesso do clube para a Série B. No ano seguinte, Ferretti encerrou a carreira depois de conquistar o título baiano pelo Rubro-Negro. Fora dos campos, o goleiro se tornou comentarista de uma rádio local e decidiu abraçar o projeto de ressurgimento do Ypiranga.
- Este processo de reerguer o clube começou em 2009, no início da gestão do presidente Valdemar Filho. No segundo semestre daquele ano, o presidente foi na rádio e falou sobre o projeto. Eu me coloquei à disposição para ajudar de forma informal. Assim eu comecei a ajudar o clube e, no fim daquele ano, fui eleito vice-presidente.
Em busca da reconstrução
Nos anos 1990, o Ypiranga viveu o seu pior momento. A década perdida foi coroada com o rebaixamento para a Segunda Divisão do Campeonato Baiano em 1999. De lá para cá, o clube não conseguiu voltar à elite.
- Quando assumimos o Ypiranga (em 2009), o clube estava perdendo o seu maior bem material, que é a Vila Canária, um centro de treinamento de 63 mil metros quadrados. A Vila estava arrematada. Se a entrega fosse confirmada, com certeza, o clube acabaria. Conseguimos suspender a entrega e começamos a mudar a situação do Ypiranga. Fizemos um mapeamento dos problemas para saber o que tínhamos, a começar pela estrutura – disse Ferretti.
De acordo com o vice-presidente do clube, depois de encaradas as dificuldades, a principal meta foi colocar o time novamente sob os holofotes. Para a diretoria, fazer a equipe profissional entrar em campo era mostrar que o Ypiranga estava vivo.
- A partir de 2010, formamos um time para disputar a Segunda Divisão. O objetivo era botar a cara, porque, quando as pessoas viam a equipe em campo, viam também a materialização do nosso trabalho. Fomos mal, mas mostramos que o Ypiranga estava renascendo. Enquanto isso, continuamos trabalhando nas divisões de base e com o futebol feminino. Mostramos que o Ypiranga estava vivo, tinha atividades e razão em existir. Fora de campo, continuamos a busca por recursos.
No futebol baiano não há nenhum clube de tão gloriosa tradição quanto o Ypiranga, o time de Popó"
Jorge Amado, no fim dos anos 1940
A iniciativa, em parte, deu certo. Em 2011, o Aurinegro voltou a disputar a Segunda Divisão do Campeonato Baiano, mas com um marketing mais agressivo. Camisas do clube voltaram a ser comercializadas, e a torcida do Ypiranga ganhou as ruas. Torcedores de Bahia e Vitória também abraçaram a causa e adotaram o Canário como segundo time. Como há muitos anos não se via, as ruas de Salvador ganharam um colorido amarelo e preto.
Mas nem tudo foi sucesso. O clube decidiu mandar seus jogos no estádio de Pituaçu e, na prática, pagou para jogar. Além disso, o acesso para a elite do futebol baiano bateu na trave.
- Neste ano, investimos mais e montamos o melhor elenco da Segundinha. Jogamos cinco jogos em Pituaçu e tivemos prejuízo em todos, mas mostramos o time no maior estádio do estado. Isso foi ótimo para o conhecimento e para mobilizarmos mais gente. Dentro de campo, o time correspondeu, e, apesar de não ter subido, o sentimento foi positivo. Não subimos por um gol (o Ypiranga ficou em terceiro). E, ainda que tivéssemos subido, ainda não teríamos estrutura para uma Primeira Divisão – admitiu o vice-presidente.
Retorno à essência: o time do povo
Nos seus mais de 100 anos de história, o Ypiranga sempre cultivou a máxima de ser um time popular. O clube, criado por jovens operários no começo do século passado e estabelecido em um bairro distante da área nobre de Salvador, viu diminuir os laços com a sociedade, e agora, no processo de renascimento, tenta refazer os nós com a sua maior razão de existência: o povo.
- Fora de campo, buscamos recursos para não deixar o clube parado. Estamos disputando campeonatos de divisões de base e o até o campeonato estadual de boliche. Além disso, procuramos divulgar o trabalho que estamos fazendo. A missão é fazer abrir o clube à comunidade. Queremos fazer com que o Ypiranga atenda à população. Nosso desejo é reativar esse histórico de clube do povo – contou Ferretti.
De Popó, o craque do povo, a Jorge, Dulce e Pastinha, ilustres torcedores
popó, um dos maiores jogadores do futebol baiano - para especial irmã dulce (Foto: Reprodução/TV Bahia)Popó é, ainda hoje, considerado o maior jogador do
futebol baiano (Foto: Reprodução/TV Bahia)
O maior jogador da história do futebol baiano, não por acaso, vestiu a camisa do Mais Querido. Popó é um dos poucos jogadores de futebol do início do século passado ainda lembrados de forma marcante na Bahia. Os baianos que acompanham o esporte há muito tempo não têm dúvidas quando perguntados sobre quem foi Popó. Não há relação com o pugilista Acelino Popó de Freitas. Todos sabem que Apolinário Santana foi o “Craque do Povo”. O Terrível, como também era conhecido, é nome de rua em Salvador e, em 2002, deu nome ao troféu do campeão baiano de futebol.
Bicampeão estadual pelo Ypiranga, Popó via sua fama ultrapassar as fronteiras da Bahia em 1923. Em uma partida épica contra o Fluminense, no Campo da Graça, antiga praça esportiva de Salvador, o maior jogador do futebol baiano marcou todos os gols da vitória do Ypiranga por 5 a 4 sobre Tricolor do Rio de Janeiro, que, no ano seguinte, seria campeão carioca com expressivos números.
No dia seguinte, jornais cariocas estamparam a manchete: "Popó 5 x 4 Fluminense." Anos depois, qualquer jogador visitante que se destacasse contra o Flu era chamado de Popó nas Laranjeiras. Onze anos depois, em 1934, Popó comandou a Seleção Baiana que conquistou o título nacional ao vencer a Seleção Paulista.
Popó era meu jogador preferido. Ele era danado na bola"
Irmã Dulce, no fim dos anos 1980
Os feitos de Popó foram eternizados de uma vez por todas nas páginas de um dos livros do mais ilustre torcedor do Ypiranga, Jorge Amado. O escritor nunca escondeu sua paixão pelo Aurinegro de Salvador. No livro "Bahia de Todos os Santos", cujo trecho abre este texto, o escritor fala de sua paixão pelo clube e não se esquece de citar o ídolo. No livro que retrata os costumes da Bahia e o caráter do povo baiano, Jorge diz aos visitantes que escolham o Ypiranga para torcer.
- No futebol baiano não há nenhum clube de tão gloriosa tradição quanto o Ypiranga, o time de Popó, antigamente poderoso, milionário, invencível, supercampeão, hoje pobre e batido, mas, em glórias, quem se compara a ele? Nem o Bahia, nem o Vitória, nem o Galícia, nem o Leônico (cito o Leônico sob violenta pressão familiar: minha mulher é torcedora do Leônico, creio que a única, apesar das afirmações em contrário). Sou torcedor do Ypiranga há mais de 50 anos. O Ypiranga pode perder à vontade porque já ganhou demais, já deu muita alegria aos seus fiéis torcedores – contou Jorge nas páginas do livro lançado no final dos anos 1940.
Em 2012, Jorge Amado completaria 100 se estivesse vivo. A data não deve passar sem homenagens do time do coração do escritor.
escritor jorge amado (Foto: Agência Estado)Torcedor do Canário, Jorge Amado citou Ypiranga no
livro  'Bahia de Todos os Santos' (Foto: Agência Estado)
- No ano que vem, teremos muitas ações no nosso marketing, que deverá ser mais agressivo. Temos boas ideias, como o lançamento do plano de sócios e o novo site, além das comemorações do centenário de Jorge Amado. Não tenha dúvidas de que vamos trabalhar em cima disso - garantiu Emerson Ferreti.
Em 2011, o Ypiranga fez homenagens a uma outra torcedora ilustre do clube. Irmã Dulce, a religiosa baiana que foi beatificada pelo Vaticano em maio deste ano, foi homenageada durante as partidas da Segunda Divisão do Campeonato Baiano. Apaixonada por futebol, Irmã Dulce frequentou, durante toda a infância, o campo da Graça, e sempre fez questão de se mostrar uma torcedora fiel do Aurinegro e apaixonada pelo futebol de Popó.
- Eu era fã do Ypiranga! Popó era o meu jogador preferido. Era um escuro com as pernas tortas. Se ele estivesse vivo hoje, ele seria Pelé. Ele era danado na bola – revelou a beata, em entrevista à TV Bahia, afiliada da Rede Globo em Salvador, no fim dos anos 1980.
Outro ilustre fã do time canário foi Vicente Ferreira Pastinha, o mestre Pastinha, um dos maiores mestres de capoeira da história. Baiano de Salvador, Mestre Pastinha levou o estilo capoeira de Angola para o mundo. Sua escola era frequentada por personalidades como Jorge Amado, Mário Cravo e Carybé. Seus feitos na capoeira foram eternizados por Caetano Veloso na canção "Triste Bahia", de 1972. Apesar da relação com a capoeira, Pastinha sempre foi um apaixonado por futebol. Além da disciplina e da organização, na escola de Pastinha, uma terceira regra era obrigatória: seus alunos sempre usavam calças pretas e camisas amarelas, cores do Ypiranga.
No gingado de Pastinha, nos escritos de Jorge, na fé de Dulce e na memória apaixonada do povo, o Ypiranga, mais do que vivo, mostra força e esperança de que em breve estará novamente a colorir as arquibancadas baianas de amarelo e preto, sempre carregado de orgulho por um passado de glórias.

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