segunda-feira, 21 de abril de 2014

Brasil Afora: time "mora" em chácara
e tem um Adriano que é Antônio

Com elenco quase voluntário, Náuas supera falta de estrutura e faz boa campanha no Acre. Time tem goleiro-promessa, pintor, servente de obras e técnico "faz tudo"

Por Rio Branco, AC
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Futebol profissional só na teoria. O que prevalece no Náuas, clube do município de Cruzeiro do Sul, que tem 80 mil habitantes e fica localizado a cerca de 640km de Rio Branco, capital do Acre, é a superação. Candidato a brigar contra o rebaixamento no início do Campeonato Acreano 2014, o Cacique do Juruá, como é conhecido, surpreendeu e está entre os quatro melhores do estadual. Uma campanha comandada por um elenco de trabalhadores. Trabalhadores mesmo. Entre eles, servente de construção civil, serrador e até agricultor, além de um técnico "faz tudo". Destaque para Adriano, pintor, volante e artilheiro do time. E que, na verdade, se chama Antônio. (O pai dele se atrapalhou na hora de registrar o filho)

Longe do eixo milionário do futebol, cada um dos jogadores vai ganhar R$ 3 mil para vestir a camisa do clube durante toda a competição, que começou em 23 de março e tem previsão para terminar em 8 de junho. Uma história de superação na terra onde o futebol não é prioridade para investimento.
Mosaico Nauas Cacique (Foto: Arte / Globoesporte)

O Náuas completa 91 anos em outubro desta temporada (é o segundo clube mais antigo do estado, atrás apenas do Rio Branco, da capital), se profissionalizou em 2008, foi rebaixado no ano passado, mas voltou à elite do futebol acreano graças à desistência do Juventus-AC. Tudo começou em 1923, e o nome veio de uma tribo indígena da região.
- O clube foi fundado por um gaúcho, Thaumaturgo de Azevedo (coronel do Exército), que tentou desbravar a floresta amazônica, chegou ao extremo norte do país e encontrou uma terra habitada por indígenas, que hoje é Cruzeiro do Sul. Lá, ele fundou a cidade no lugar onde estava uma tribo indígena chamada Náuas, por isso terra dos Náuas. Somos Náuas. Quase tudo no município tem algo relacionado ao nome Náuas, que é uma tribo que existe até hoje - explicou o presidente, diretor de futebol, técnico e roupeiro do clube, Zacarias Lopes, que também é funcionário público.
Zacarias Lopes presidente do Náuas (Foto: Duaine Rodrigues)Zacarias Lopes, o "faz tudo" no Náuas (Foto: Duaine Rodrigues)
O dirigente assumiu a presidência em 5 de março de 2012, e o mandato termina no mesmo dia de 2016. O projeto, segundo ele, é divulgar a cidade, os costumes e a cultura da região. Zacarias pegou um clube cheio de dívidas e organizou a casa, mesmo sem tê-la. Hoje, o Cacique não tem sede administrativa e nem um campo para treinar. O time tem apenas uma sacola para carregar o estatuto e a ata de eleição. Utiliza, quando é liberada, a Arena do Juruá para realizar as atividades com bola à noite, já que a maioria do elenco trabalha durante o dia.
- Nossa pretensão era resgatar o Náuas da segunda divisão com todos os jogadores e comissão técnica da casa. Conhecemos nossa fragilidade e falta de estrutura, por isso não esperávamos voltar este ano. O trabalho que programamos para a segunda é o mesmo que estamos fazendo hoje. Juntando com a sorte e outros fatores, conseguimos uma vaga no G-4. Isso é raro, é sorte. Se tivéssemos estrutura, dava para pensar em título, mas dessa forma não tem como. Por enquanto, vamos curtir esse momento.
As dificuldades se multiplicam quando se fala do setor financeiro. Dos R$ 45 mil que o clube vai receber do convênio com o poder público (única fonte de tenda), 60% do recurso ficará bloqueado pela justiça trabalhista - dívidas com jogadores que defenderam o clube nas temporadas passadas. O time, que representa cinco municípios da região do Vale do Juruá (Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Rodrigues Alves, todos localizados na zona oeste do Acre), não recebe apoio de nenhuma prefeitura e nem de empresários locais.
- O faturamento é zero. O futebol profissional é cercado de leis que geram logísticas grandes. A falta de conhecimento do profissionalismo em Cruzeiro do Sul fez com que o Náuas cometesse alguns erros. Hoje, por exemplo, nosso principal patrocinador é o governo e temos pendências com jogadores que entraram na justiça contra o clube - explicou Lopes.
O convênio será repassado em três vezes. A cada R$ 15 mil, o clube fica com R$ 6 mil. Em um acordo com os jogadores, cada um vai receber R$ 3 mil para todo o estadual. O dinheiro, porém, só será pago quando o clube tiver condições. Ou seja, o tempo para o pagamento é indeterminado.
Para disputar o estadual, o time enfrenta uma verdadeira saga. Com a Arena do Juruá, estádio de Cruzeiro do Sul, sem condições para receber jogos (os laudos só foram concluídos este mês), o time precisou jogar todo o primeiro turno na capital. Por sorte, o Náuas conseguiu uma chácara em Rio Branco, cedida por uma juíza criminal que mora na capital, pagou R$ 15 mil (do bolso do presidente) para bancar o transporte na cidade e tem apoio de um empresário da capital para a alimentação dos jogadores.
No alojamento improvisado em Rio Branco, 18 pessoas, incluindo jogadores e comissão, se dividem em três quartos. Com treinos pela manhã, o elenco ganha folga à tarde e a balada à noite é limitada. O toque de recolher é às 22h. Para passar o tempo, os atletas brincam com a bola na piscina, jogam vídeo game, conversam e passeiam pelas praças da região.
"Grupo de guerreiros"
Se a história do atual grupo do Náuas se entrelaça com a palavra superação, pode ter certeza que o volante Pelim não poderia ficar fora. Cleilson Maciel Gomes, de 27 anos, é funcionário de uma empresa de prestação de serviço para a Universidade Federal do Acre (Ufac), Campus de Cruzeiro do Sul.O jogador se divide entre o trabalho formal, os treinos e até mesmo os estudos.
Pelim, do Náuas, se divide entre o futebol e o trabalho formal (Foto: GloboEsporte.com)Pelim, do Náuas, se divide entre o futebol e o trabalho formal (Foto: GloboEsporte.com)

- Limpo, troco bebedouro. Entro 5h e saio de lá 16h. Chego em casa, tomo banho e vou ao treino. Às 19h, vou para a aula (está concluindo o ensino médio) e vou dormir depois de meia-noite. O outro dia é tudo de novo. Vale a pena, se Deus quiser vamos ser recompensados. Trabalho com um grupo de guerreiros.
Joia no gol
Matheus goleiro do Náuas (Foto: Duaine Rodrigues)Matheus, goleiro do Náuas: apenas 17 anos (Foto: Duaine Rodrigues)
Sob a desconfiança de muitos, Zacarias Lopes desafiou os prognósticos aos apostar no jovem goleiro Matheus de Araújo, de apenas 17 anos - único arqueiro no elenco. O camisa 1 estreou no ano passado no futebol profissional quando defendeu o próprio Náuas nos três últimos jogos do estadual - tinha 16 na época. É estudante do ensino médio na escola Ancelmo Maia, em Cruzeiro do Sul, e se divide entre a sala de aula e o campo.
- Está sendo uma responsabilidade muito grande. Estou trabalhando forte desde o ano passado com o técnico e espero fazer um bom campeonato. É difícil, pois ainda estou pegando experiência, mas estamos fazendo um bom trabalho. O que eu quero é ser jogador de futebol, mas o estudo também é importante. Vou seguir nos dois.
Apesar da boa fase, os números não são tão favoráveis à jovem promessa do futebol do Juruá. Em seis jogos disputados pelo estadual, ele tem o segundo gol mais vazado da competição. Levou 11.
Pintor artilheiro
O Náuas não tem o melhor ataque do Campeonato Acreano. Longe disso. Mas tem o artilheiro: o volante Antônio Arisson Souza, conhecido por Adriano. O jogador de 23 anos já balançou a rede em seis oportunidades e trabalha como pintor no município de Cruzeiro do Sul para sustentar a esposa e o filho. Ele explica o apelido, que não tem conexão alguma com o nome da identidade.
- Meu pai ia colocar meu nome de Adriano, mas na hora de registrar esqueceu e colocou Antônio (risos).
Adriano, volante do Náuas (Foto: João Paulo Maia)Adriano, volante do Náuas, comemora gol. Ele é o artilheiro do time com seis gols (Foto: João Paulo Maia)

De fora da área, de canela, enfim, não importa o jeito. Apesar de jogar no setor que dá suporte à defesa, Adriano é o goleador do time. Entre a tinta e a rede, ele aproveita os dias de fama na região.
- É uma rotina difícil, mas a gente vem buscando fazer um bom trabalho, treinando diariamente e fazendo um bom campeonato. Não é que o ataque não esteja funcionando, mas às vezes vou ao ataque e a bola sobra para eu fazer os gols para ajudar a equipe. Comecei a jogar no futebol adulto em 2010 com a camisa de um time amador da cidade. Todo mundo tem um sonho, se um dia for preciso ir para fora do estado com certeza será o melhor para mim - completou.
Viagem nas águas para treinar
Do Miritizal ao Náuas. O meio-campo Edvaldo Nogueira da Páscoa, ou Som, não é titular, mas sempre entra no segundo tempo. O jogador de 26 anos foi descoberto pelo técnico Zacarias Lopes quando vestia a camisa do time do bairro Miritizal, no Campeonato Interbairros de Cruzeiro do Sul, na última temporada.
Como servente de construção civil, ganha R$ 750 por mês para ajudar no sustento da família e encara uma viagem diária para chegar aos treinos. Ele mora no bairro da Olivença e sobe o Rio Juruá de barco para chegar à cidade.
- Tenho que pegar um barco para chegar ao trabalho. Todos os dias são 30 minutos para ir e 30 minutos para voltar. Meu sonho era jogar futebol, e agora tenho essa experiência. Aqui só tem craques. Estamos construindo nossos sonhos aos poucos - comentou.
Segredo é a farinha
Com sete pontos e na quinta posição do estadual, o Náuas é a surpresa da temporada no futebol acreano. E qual é o segredo do time de guerreiros? A opinião dos atletas e da comissão técnica é unânime: a famosa farinha de Cruzeiro do Sul é o que dá gás à equipe.
joagadores do náuas seguram saco de farinha de cruzeiro do sul (Foto: João Paulo Maia)Farinha de Cruzeiro do Sul é o "gás" do Náuas (Foto: João Paulo Maia)

- O segredo é a farinha de Cruzeiro do Sul, o peixe da nossa região, a tapioca, esses negócios da Amazônia (risos). Acho que o segredo mesmo é a grande quantidade de jogadores talentosos que temos na região no Juruá e no Acre. Nossa região produz muitos talentos, mas falta oportunidade - opinou o técnico.
Para o volante Adriano, artilheiro da equipe, a boa fase do clube se deve ao companheirismo do elenco. A coletividade, segundo ele, está fazendo a diferença a favor do Cacique.
- A união do grupo é o segredo. Cada um vai incentivando o outro - finalizou.

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