quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Joaquim Cruz, Médici e Ricky Martin: um Mané Garrincha sem Garrincha

Após polêmica, estádio de Brasília para 2014 mantém nome de ídolo que nunca pisou no local. Mas Menudos, Mamonas e Legião fizeram história...

Por Marcelo Parreira Brasília
Em maio de 2011, duas tentativas de implosão fracassaram em derrubar parte da arquibancada do estádio Mané Garrincha, no centro de Brasília. Era mais um passo na reforma – uma reconstrução completa, na verdade – da arena na preparação da capital federal para a Copa do Mundo de 2014. Os problemas na detonação de 250 quilos de explosivo adiaram apenas por alguns dias a demolição do último resquício de uma parte importante da história de Brasília, e que acabou sucumbindo às máquinas. Por pouco, também, o lugar não mudou de nome. De novo.
Inaugurado em 1974, o agora "Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha" nem sempre foi chamado pelo nome do ídolo do Botafogo, bicampeão mundial com a Seleção. Detalhe: o ex-camisa 7 nunca pisou no local, que tem mais shows famosos do que partidas de futebol históricas. Menudos, Legião Urbana e Mamonas Assassinas são alguns dos grupos que lotaram o estádio, que receberá sete jogos de 2014, além de já garantido como sede da abertura da Copa das Confederações em 2013. A previsão é que a obra esteja pronta até dezembro deste ano, com custo mínimo de R$ 671 milhões (ainda faltam algumas licitações, como a da cobertura) e que pode passar até de R$ 1 bilhão.
Mané Garrincha Brasília projeto copa 2014 (Foto: Divulgação)Projeto do Estádio Nacional de Brasília, que voltou a ser chamado de Mané Garrincha (Foto: Divulgação)
Construído em conjunto com outras instalações esportivas no centro da capital, era conhecido apenas como parte do que já foi chamado de Complexo Poliesportivo Presidente Médici, uma homenagem ao general que comandou com punhos de aço o Brasil durante parte da ditadura militar. A inauguração do estádio, inclusive, aconteceu poucos dias antes de o general deixar o poder. Só depois o campo receberia o nome do “Anjo das pernas tortas”. Já o complexo permaneceria com a homenagem ao ex-presidente até 1996, quando uma lei o renomeou Complexo Poliesportivo Ayrton Senna.
Se o clima político na inauguração era nebuloso, o tempo para a primeira partida não poderia ser mais típico de Brasília. Aos 57 anos, o ex-jogador Péricles não tem nenhuma dificuldade em se lembrar do jogo, quando atuou pelo Ceub.
Péricles, ex-jogador que atuou no estádio Mané Garrincha (Foto: Marcelo Parreira / Globoesporte.com)Péricles estava em campo na abertura do estádio
(Foto: Marcelo Parreira / Globoesporte.com)
- Foi num domingo à tarde, um sol forte. O primeiro gol foi do Vaguinho. Era a primeira partida, o nosso time ainda estava se acertando dentro do campeonato. O Ceub tinha feito uma seleção, jogadores de todos os lados, só tinha eu e mais dois de Brasília, o resto era de fora. E o Corinthians passou por cima. Foi jogo duro, lá e cá, porque o nosso time tinha caras experientes. Mas o time do Corinthians era um time certinho.
A partida terminaria com a vitória do Corinthians por 2 a 1. Com passagens pelo Guarani e Atlético Mineiro, Péricles se destacou mesmo foi no futebol brasiliense. Campeão diversas vezes por vários times da capital, ele lembra que o estádio foi inaugurado incompleto.
- Do lado onde tinha cobertura não tinha nada. Começaram a construir as cabines, mas na inauguração não estava terminado. Só havia uma parte da arquibancada, do outro lado era tudo de madeira. Do lado da tribuna, você via as madeiras da obra, as cabines todas precárias. Mas inaugurou desse jeito.
Foi lá que o ex-jogador viu começar a treinar um dos maiores nomes do atletismo brasileiro.
- O Mané Garrincha era o único de Brasília com pista de atletismo de tartan, e o Joaquim Cruz treinava junto com a gente. A gente estava treinando no campo, e o Joaquim Cruz estava dando os primeiros passos lá. Conheci o Joaquim lá, um molequinho.
Pelé em campo. Garrincha, nunca
fifa vistoriando o estadio nacional em brasilia (Foto: Agência Brasilia)Obras do estádio de Brasília devem ser concluídas
até dezembro deste ano (Foto: Agência Brasilia)
Ao longo da carreira, Péricles voltaria ao estádio. No mesmo ano, enfrentou o Rei em campo, não muito antes dele se aposentar pelo Santos.
- Nós perdemos de 3 a 1 pro Santos. Santos de Pelé. Pelé marcou um gol, e Nenê, que era o centroavante, marcou os outros dois. O nosso acho que foi o Moreira. Jogo bom, casa cheia.
Por uma dessas curiosidades do destino, quem nunca pisou no estádio foi Garrincha. É o que conta Paulo Henrique Azevedo, professor da Universidade de Brasília (UnB). Ele comanda um laboratório em que uma das equipes de pesquisa estuda a história do esporte na capital federal, começando pelo estádio.
- O Mané Garrincha morreu em 1983 sem nunca ter jogado aqui. Foi feita uma homenagem a distância para ele, mas ele nunca veio para nenhum jogo ou solenidade no estádio, embora  tenha falecido só nove anos depois da inauguração – contou Azevedo.
Menudos, Legião Urbana e Mamonas: shows históricos
Oficialmente, a capacidade do Mané Garrincha à época da demolição era de pouco mais que 42 mil pessoas. Mas o estádio já recebeu públicos muito maiores, principalmente devido à sua outra vocação: a de arena para shows, como descobriu Azevedo.
- Nós tivemos shows musicais que na verdade foram os grandes eventos do estádio. Eventos religiosos também. O Mané Garrincha ficou destacado foi por essas coisas, não pelo futebol.
Ao longo dos quase quarenta anos de história, o estádio recebeu bandas como A-Ha, Information Society, Black Eyed Peas e Iron Maiden. Foi lá também o último show dos Mamonas Assassinas: em 1996, o grupo morreu em um acidente de avião ao voltar da capital federal para São Paulo após a apresentação.
Outro show ocorrido no local e que se tornou famoso foi do grupo Legião Urbana. Em 1988, a banda brasiliense se desentendeu com o público, que jogou bombas e invadiu o palco, irritado com o atraso no começo do espetáculo. Em resposta, Renato Russo encerrou mais cedo a apresentação, o que desencadeou uma pancadaria entre o público e a polícia, resultando em mais de 400 feridos.
FRAME confusão no estádio Mané Garrincha (Foto: Reprodução)Show do Legião Urbana em 1988 terminou em confusão no Mané Garrincha (Foto: Reprodução)
Para Azevedo, o show de maior impacto, no entanto, foi outro.
- O show de maior espectro que tivemos lá não foi do Legião Urbana, do Lenny Kravitz ... Foi um show dos Menudos. O Ricky Martin estava lá, foi uma loucura, uma coisa impressionante. Tanto as arquibancadas como o interior do estádio foram ocupados. Normalmente se reservava só o campo, ou só as arquibancadas, mas estava tudo muito cheio. E ocorreram vários problemas. Crianças passavam mal, ocorreram muitos atendimentos, jovens querendo invadir para agarrar os ídolos. Os bombeiros tiveram dificuldade de transportar os jovens para hospitais.
Segundo Azevedo, é provável que seja de algum show o maior público registrado no estádio, mas não existem muitos registros formais confiáveis destes dados. Assim, o público recorde oficial do Mané Garrincha é do futebol – 51 mil pessoas ocuparam as arquibancadas para ver o Gama ser campeão da Série B do Campeonato Brasileiro de 1998.
Polêmica: Estádio Nacional ou Mané Garrincha?
Diante do fim da estrutura física, só o nome restava ao estádio. E mesmo ele foi ameaçado quando o governo do Distrito Federal anunciou que a nova arena se chamaria Estádio Nacional de Brasília. A mudança gerou resistência, que começou na universidade, após uma banca de mestrado.
- Foi um grupo de pessoas dentro da própria UnB, formado por professores, estudantes, pesquisadores que atuam nessa área do esporte. A gente notou a falta, a ausência de um movimento que contestasse essa decisão do governo – disse Pedro Avalone, secretário distrital do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e doutorando da UnB.
FRAME estádio Mané Garrincha (Foto: Reprodução)Imagem do projeto original do Mané Garrincha:
recorde de público é de 51 mil (Foto: Reprodução)
Surgia assim o movimento “Fica Garrincha”, que começou com um abaixo-assinado eletrônico discreto. Aos poucos, no entanto, o interesse e a adesão popular surpreenderam até mesmo os organizadores. Hoje, mais de 2 mil pessoas participam do abaixo-assinado eletrônico que pedia a manutenção do nome, e o movimento foi amplamente noticiado e divulgado na internet.
- Nós tínhamos duas preocupações. Uma com a própria memória da cidade, porque o estádio está próximo de fazer 40 anos e já faz parte da história da cidade. A outra com a memória do jogador, que, embora tenha sido brilhante, é muito pouco reconhecido pelos órgãos de administração do futebol. E ele simboliza aquilo do futebol arte, do futebol brilho.
A pressão surtiu efeito. Recentemente, o governador Agnelo Queiroz anunciou uma solução híbrida. O novo estádio, com capacidade para 71.400 pessoas e que deve ficar pronto no fim deste ano, vai se chamar “Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha”. Para Sérgio Graça, coordenador do Comitê Organizador Brasília 2014 , toda a confusão foi na verdade “um grande mal-entendido”. Segundo ele, nunca houve uma intenção formal de alterar o nome do estádio.
- Quando a gente se candidatou (a ser uma das sedes do Mundial), a gente tinha a noção de que até por não ter um estádio tradicional, como o Maracanã ou o Mineirão, a gente achava interessante enaltecer o nome da cidade, o mundo saber que esse estádio ficava na capital do país. Nunca passou pela cabeça de ninguém trocar o nome.
Segundo ele, seria necessário um decreto para fazer a alteração oficial, o que não aconteceu. E ele descarta inclusive que mesmo isso tivesse algum efeito prático.
- Como é que você chega de repente e fala "ninguém mais chama de Maracanã o estádio Mário Filho"? Não tem jeito. A gente queria enaltecer um pouco mais o nome da cidade, só isso.
Graça contou ainda que está em estudo a ideia de se construir no novo estádio um museu, que conte sobre as contribuições de Brasília ao esporte nacional, lembrando de atletas que surgiram no DF, como Kaká, o zagueiro Lúcio e Joaquim Cruz. Mas sem esquecer de reservar um espaço também para homenagear o “Anjo das Pernas Tortas”, que nunca pisou no estádio que leva seu nome.
fifa vistoriando o estadio nacional em brasilia (Foto: Agência Brasilia)Brasília vai receber 7 jogos da Copa de 2014 e terá abertura da Copa das Confederações (Foto: Ag. Brasilia)

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