segunda-feira, 25 de julho de 2016

Em busca do alvo perdido: Rio recebe o mais desastrado dos campeões

Americano Matthew Emmons já tem três pódios olímpicos, mas ainda tenta vencer a prova que o transformou em uma das figuras mais incríveis da história dos Jogos

Por Rio de Janeiro
Matthew Emmons (Foto: AP)Matthew Emmons eufórico em Atenas: ele mal sabia o tanto de reviravoltas que teria (Foto: AP)
Dos desastrados, talvez Matthew Emmons seja o mais vencedor; dos vencedores, talvez Matthew Emmons seja o mais atrapalhado. Analisar o currículo do atirador americano já basta para reconhecer nele um atleta de extremo sucesso. São três medalhas, uma de cada tipo, em três Jogos Olímpicos diferentes. Por trás das conquistas, porém, existe uma das histórias mais malucas que as Olimpíadas já criaram - uma epopeia de sorte e azar, de amor e angústia, e que seguirá sendo escrita no Rio, onde Emmons buscará o alvo perdido. Ele é mais uma das personagens da série "Tô chegando", do GloboEsporte.com.
CAPÍTULO UM: ATENAS E O TIRO NO VIZINHO

Mattew Emmons era um rapaz de 23 anos quando desembarcou em Atenas para sua primeira experiência olímpica. Ele começara a atirar muito antes, com seis anos, em brincadeiras familiares em Nova Jersey, onde nasceu. Com dez anos, já saía a caçar de arma em punho; com 14, começou a disparar em alvos. Os resultados logo foram aparecendo, e Emmons se consolidou como forte candidato a medalhas em um esporte particularmente forte nos Estados Unidos.

Em Atenas, ele participaria de três competições: carabina três posições 50m, carabina deitado 50m e carabina de ar 10m. Jovem, de cabelos loiros curtos e levemente arrepiados, portando um cavanhaque ralo, era a personificação da autoconfiança. Quem olhasse para ele logo identificaria um potencial campeão olímpico. E acertaria em cheio. De fato, ele sairia da Grécia com o ouro na prova de carabina deitado. Mas a conquista não seria seu momento mais marcante naqueles Jogos.
Matthew Emmons (Foto: AP)Emmons perplexo após último tiro na carabina três posições em Atenas: simplesmente não podia ser verdade (Foto: AP)


O que ficou mesmo foram os acontecimentos com a carabina três posições. Emmons, na fase classificatória, avançou com um pé nas costas. Só não foi melhor que o chinês Jia Zhanbo. Chegou à final firme e forte para buscar o ouro. E começou a dar mostras claras de que seria insuperável. Em seus primeiros nove tiros, teve nota 10, ou superior a 10, em quatro. Foi o melhor em duas séries, o segundo melhor em outra, o terceiro melhor em outra. Como já tinha boa pontuação na classificação (que é levada à final), chegou ao derradeiro tiro com o maior conforto do mundo. Precisava de um acerto simples, um 7.1, nota amadora, nota muito inferior à de qualquer adversário em qualquer tiro na final. Era atirar e comemorar. Era atirar e ser campeão olímpico.

Era atirar e conhecer o fracasso.

Emmons relaxou, encaixou o corpo, apontou a arma, se concentrou e... PÁ! Lá foi o tiro, cruzando o ar de Atenas, rompendo o espaço olímpico, até encontrar o alvo. Um pequeno porém: o alvo do vizinho.

Sim. Matthew Emmons, um dos melhores atiradores do mundo, o sujeito que já sentia o gosto do ouro na boca, em seu último tiro, cometeu um erro que não cometeria nem quando criança: acertou a pista ao lado. Em vez de atirar em seu alvo, atirou no alvo do adversário à direita.
Matthew Emmons (Foto: AP)Painel mostra tiros dos finalistas. O de Emmons não foi localizado: estava no vizinho (Foto: AP)
O silêncio petrificou o estande de tiro. As pessoas se olhavam, incrédulas. Aquilo simplesmente não parecia possível. Até que a confirmação da nota desabou sobre a cabeça do americano: 0.0. Ele perdeu o ouro. Perdeu a prata. Perdeu o bronze. Ficou na última colocação da final.

Como explicar? Doze anos depois, o americano ainda tenta.

- Trabalhei duro naquele ano focando em como acalmar meu corpo e relaxar o máximo possível para dar um bom tiro. Estava lutando para encontrar uma posição naquele momento, e, às vezes, apontava para a direita. Nunca olhei para o número do alvo. É algo que, na verdade, você nunca faz. Então me concentrei no outro alvo, atirei e disse: "Ok, não foi tão ruim". E era no alvo do vizinho... O problema era onde eu estava mirando. Estava me ajeitando e isso aconteceu - diz o atirador ao GloboEsporte.com.

O americano, zonzo de tão abalado, decidiu fazer aquilo que nove entre dez pessoas fariam depois de perder uma medalha de ouro atirando no alvo errado: foi encher a cara. O problema é que o bar estava lotado justamente de atiradores. Ora, atiradores no meio de uma Olimpíada só poderiam falar sobre tiros, e Emmons, mastigando sua miséria, só queria um pouco de paz - ou, de repente, uma bela tcheca disposta a consolá-lo.

Emmons, pobre Emmons, mal sabia que os dados de seu destino ainda estavam sendo jogados. Do nada, plantou-se diante dele uma moça de cabelos castanhos claros - que ora pareciam pender para o loiro, ora para o ruivo. Ela se chamava Katerina Kurkova. Também era atiradora. Representava a República Tcheca, a quem daria uma medalha de bronze naqueles Jogos. Tinha 21 anos, olhos vivos, expressão simpática. Gentil, aproximou-se do americano para oferecer uma palavra de apoio.

Quatro anos depois, eles estariam novamente juntos em uma Olimpíada, desta vez como marido e mulher.
CAPÍTULO DOIS: PEQUIM E O GATILHO APRESSADO

Katerina Kurkova tornou-se Katerina Emmons em 2007, quando se casou com Matthew em Pilsen, sua cidade natal na República Tcheca. Os dois estavam no auge da preparação para os Jogos de Pequim. Ambos vinham se consolidando ainda mais na elite mundial do tiro. Eram candidatos naturais a novas medalhas na Olimpíada do ano seguinte.
Katerina e Matthew Emmons (Foto: AP)Matthew e Katerina, casados, disputaram os Jogos de Pequim (Foto: AP)
E assim foi. Katerina alcançou seu apogeu: levou ouro na carabina 10 metros e prata na carabina 50 metros três posições. Matthew Emmons também assegurou mais uma medalha: prata na carabina deitado 50m. Mas ele ainda tinha um fantasma a exorcizar.

Lá foi Emmons em busca do ouro perdido. Na fase classificatória da carabina três posições, ele repetiu o que fizera quatro anos antes. Avançou novamente com folga, novamente como segundo melhor, novamente com tiros que beiravam a perfeição. Chegou à final como enorme candidato ao título.

Desta vez, tinha que ser diferente. E Emmons estava ensandecido. Deu um primeiro tiro razoável, mas depois superou a nota 10 nos sete disparos seguintes. Era impressionante: ele pulverizava os adversários, atirava como uma máquina, flertava com o momento mais sublime de sua carreira. Era um atleta em seu ponto máximo, em seu instante de magia. Até que chegou o momento final, o momento de pisotear em seus traumas, o momento de vingar o que acontecera quatro anos antes.

O momento de fracassar novamente.

Emmons precisava de uma nota ainda menor do que em Atenas. Menos de 7 bastaria para garantir o ouro. Era impossível não conseguir.

Ele foi lá, pegou a carabina, certificou-se de qual era seu alvo, encaixou o corpo, respirou fundo, ergueu a arma para... PÁ!

Não era possível. Emmons escutou o barulho e ficou atordoado. Teria aquilo saído de sua arma?

Sim, teria. Enquanto preparava a carabina para a posição final, com ela já alinhada para a mira derradeira, Emmons apertou o gatilho sem querer. Seu dedo escorregou. O tiro até acertou a marca, mas com uma pontuação inexpressiva: 4.4, a pior de toda a final. Lá se foi o ouro, lá se foi a prata, lá se foi o bronze. Emmons, de tão disparado que estava na liderança, ficou em quarto lugar, mesmo com a tragédia do último tiro.
Matthew Emmons (Foto: AP)Emmons é consolado por Katerina depois de apertar o gatilho antes da hora e jogar fora outra medalha de ouro (Foto: AP)


Incrédulo, perplexo, o americano começou a se afastar das posições de tiro. Caminhou devagar, olhar perdido, na direção das arquibancadas. Posicionou-se ali. Com as duas mãos, apoiou-se em uma barra de segurança. De cima dela, vieram dois braços que entrelaçaram seus cabelos. Katerina repousou o queixo sobre a cabeça do marido e tentou consolá-lo. Como fizera quatro anos antes.
CAPÍTULO TRÊS: LONDRES E A PRESSÃO INSUPORTÁVEL

Matthew Emmons insistiu - e embalado por diferentes motivações: pela prata que ganhara na carabina 50m deitado em Pequim, mas sobretudo pela vitória pessoal ao enfrentar e vencer um câncer de tireóide em 2010, um ano depois do nascimento de sua filha, Julia.

Lá estava ele em Londres, novamente como forte postulante ao ouro nas três posições - mas desta vez acompanhado pela fama de atrapalhado que ganhara nas duas Olimpíadas passadas.

Veio a fase classificatória, e Emmons manteve sua sina. Fez exatamente o que fizera em Atenas, exatamente o que fizera em Pequim: classificou-se em segundo.
Cometi um erro em Atenas que me custou o ouro na prova de três posições e um erro diferente em Pequim que me custou a medalha de ouro ou qualquer medalha. Então, em Londres, era a competição mais difícil que tive que atirar.
Matthew Emmons
Mas o que importava mesmo era a final. Era lá que estavam suas assombrações. E ele, mais uma vez, mostrou seu talento. Nos nove primeiros tiros, fez mais de 10 pontos em seis. Chegou novamente com a medalha nas mãos para o disparo decisivo. A diferença é que o ouro estava distante, graças ao desempenho fora do comum do italiano Niccolò Campriani - que batera o recorde olímpico na classificação. Restava a luta pela prata, e Emmons era o segundo colocado antes da série final. Estava sendo caçado de perto pelo sul-coreano Kim Jong-Hyun, pelo francês Cyril Graff e pelo chinês Zhu Qinan. Se falhasse novamente, seria a desgraça redesenhada: perderia mais um pódio.

E, claro, todo o peso do mundo caiu sobre suas costas quando ele preparou a carabina para o último disparo. Ali estavam Atenas e Pequim - ali estavam o tiro no alvo errado e o gatilho apertado antes da hora. Emmons sabia: não tinha o direito de errar.

Mas errou. Não a ponto de acertar o alvo do vizinho. Não a ponto de disparar antes da hora. Mas angustiado, pressionado, nervoso até os limites do suportável, deu seu pior disparo da final - o pior entre todos os participantes da decisão. Ganhou 7.6. Foi ultrapassado pelo sul-coreano e viu o francês dar um tiro quase perfeito. Quase. Por 0.3 de diferença, o bronze ficou com Emmons.
Foi um alívio. Para qualquer atletas que já tivesse um ouro e uma prata em outra prova, o bronze seria acompanhamento, jamais protagonista. Mas não para Emmons. Depois de tudo que aconteceu na carabina três posições, é essa a medalha que ele mais valoriza.

- Sou mais orgulhoso da minha medalha de bronze do que de qualquer outra na minha carreira. Cometi um erro em Atenas que me custou o ouro na prova de três posições e um erro diferente em Pequim que me custou a medalha de ouro ou qualquer medalha. Então, em Londres, era a competição mais difícil que tive que atirar. Quando toda a imprensa perguntava sobre o que houve em Atenas e o que houve em Pequim, lá estava eu em Londres, ainda em grande forma. E o que fazer? Eu estava tão nervoso e, quando olhei no monitor e vi que estava em terceiro, fiquei muito satisfeito. As coisas que tive que superar para chegar àquele ponto e conseguir aquela medalha de bronze, não conheço ninguém que tenha conseguido. É a medalha olímpica de que tenho mais orgulho.
Matthew Emmons (Foto: AP)Matthew Emmons celebra o bronze conquistado em Londres após tragédias em Atenas e Pequim (Foto: AP)

CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO: RIO 2016

Emmons estará no Rio para a Olimpíada - Katerina não competirá. E ele vai competir na fatídica prova de carabina três posições para escrever o novo capítulo de sua impressionante história de vaivéns.

Para ele, o Rio não é uma chance de redenção para o que aconteceu nas três últimas Olimpíadas. A redenção, diz ele, já veio com o bronze de Londres. O que ele quer agora é ser feliz, é aproveitar a Olimpíada, é curtir um esporte que ele faz por amor.

- A razão pela qual continuo fazendo isso é que amo esse esporte, amo atirar, amo competir, amo todos os meus adversários, que são grandes amigos e meus companheiros de equipe. E eu amo ir para uma competição e ter realmente uma boa performance. Isso, para mim, é extremamente divertido e recompensador. Se eu for capaz de conquistar outra medalha, maravilha. Se não conseguir e tiver um bom desempenho, estará ótimo também. Eu não preciso de mais medalhas. Estou feliz com as que tenho. 

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