sábado, 21 de março de 2015

Tudo Menos Futebol: as histórias e as lutas de Zé Roberto, sempre um Zé

Jogador do Palmeiras é primeiro entrevistado em nova série do GloboEsporte.com. Ele detalha batalhas da infância e faz planos para o futuro, longe do Brasil

Por São Paulo

Quando o palácio do emir recebeu um Zé, aquele Zé não quis comida de emir: quis comida de Zé. Rejeitou as lagostas, mandou às favas o caviar e pediu arroz com ovo. Queria lembrar que continuava sendo Zé – o Zé parado pela polícia repetidas vezes por dirigir carrão de luxo, como se carrão de luxo não pudesse ser de Zé; o Zé office boy; o Zé que apanhou da vida quando o pai foi embora de casa e, enquanto apanhava, apanhou mais ainda com a morte da irmã; e, sobretudo, o Zé que venceu tudo isso e fez um compromisso moral consigo: ser sempre Zé. 

José Roberto da Silva Júnior, o Zé Roberto, tem 40 anos, defende o Palmeiras e disputou duas Copas do Mundo. Mas, para a entrevista abaixo, isso pouco importa. É com ele que o GloboEsporte.com inicia uma nova série, Tudo Menos Futebol, com conversas de tema livre, bate-papos sobre a vida, a visão de mundo, as ideias de figuras marcantes da bola. Só há uma proibição: não se fala sobre futebol. A ideia é mostrar essas personagens descalças de chuteiras: como homens, não como boleiros.

Zé Roberto recebeu a reportagem em sua casa, em Alphaville, São Paulo. Acomodado em um sofá na sacada, com uma piscina e um campo de futebol ao fundo, o jogador resgatou lembranças do passado, fez planos para o futuro e analisou seu presente em entrevista de mais de uma hora. Confira a íntegra da conversa: 

Zé, estava aqui pensando, talvez uma boa forma de juntar as duas pontas da sua trajetória seja pensar nessa casa onde você mora hoje e na casa onde você morava na infância. Qual a diferença entre elas?

Rapaz, a diferença é enorme. Não tem nem comparação. É a mesma coisa de um copo d’água para um copo de vinho. O gosto, a cor, é tudo totalmente diferente. Mas por incrível que pareça... Por exemplo, agora, quando estamos batendo um papo aqui na sacada, ou se estou na piscina, ou se estou no campinho, o filme da minha infância não para de passar na minha cabeça. Eu estar hoje nessa minha casa aqui é um sonho realizado, um sonho de quando era criança, de quando saí da periferia de São Paulo em busca de algo melhor, de ser alguém da vida, de dar um conforto para minha família. 

Então você costuma parar, pensar, fazer esse paralelo, fazer essa comparação...


Não tem como não fazer. Eu alcancei além daquilo que eu esperava, mas meus pés continuam no chão. De onde saí e aonde cheguei, consigo dar valor às mínimas coisas. Isso é algo fundamental, que com certeza vou passar para meus filhos, que nasceram em uma época diferente, que vivem uma realidade bem diferente daquela que eu vivi.

É verdade que você, em um jantar em um palácio, com vários pratos elaborados, pediu para comer arroz com ovo?
Por mais que tivesse saído da periferia e naquele momento estivesse no palácio, eu continuava sendo a mesma pessoa"
Zé Roberto
No Qatar, depois de conquistarmos um título, o rei do país, o emir, nos chamou para jantar no palácio dele. Quando entrei naquele palácio, passou na cabeça esse mesmo filme de que a gente estava falando agora. Tinha várias opções no cardápio, com caviar, lagosta, aquelas comidas exóticas. Naquele momento, chamei o tradutor, seu Abdel, e pedi para ele falar com o cozinheiro, ver se ele podia fazer um arroz com ovo. Ele falou com o chefe da cozinha, e o chefe me trouxe. Meus companheiros olharam e perguntaram: "Poxa, Zé, vai comer arroz com ovo?" Falei: "Hoje, quero comer arroz com ovo, para eu nunca esquecer as minhas raízes, de onde vim, de onde saí". Foi um momento em que senti isso. Mesmo no palácio do rei, pude fazer uma reflexão. Pensei que, por mais que tivesse saído da periferia e naquele momento estivesse no palácio, eu continuava sendo a mesma pessoa.
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé, em momentos de luxo, faz questão de lembrar das dificuldades de sua infância (Foto: Marcos Ribolli)


E como foram essas raízes? Conte sobre sua infância.

Nasci e cresci na periferia de São Paulo, na zona leste, na Vila Ramos. Tenho cinco irmãos. Minha mãe praticamente teve que cuidar de nós sozinha. Na minha infância, meu pai saiu de casa, e minha mãe teve que trabalhar em dois empregos para nos sustentar, nos dar uma educação digna, embora não tivesse tempo para isso. Minha educação veio praticamente da escola onde estudei, a Antônio Duarte de Almeida, e do Pequeninos do Jóquei, a escolinha onde comecei jogando com sete anos. Minha educação acabou não vindo diretamente de dentro de casa, porque não tinha a presença do meu pai, tampouco da minha mãe, que ficava ausente por causa dos trabalhos que ela tinha. Quando olho para minha vida hoje, olho para mim e falo que sou um vencedor. Sair de onde saí e chegar aonde cheguei é uma tarefa que nem todos conseguem alcançar. No meio dessa história, teve alguns percalços, e um deles foi a criminalidade. A maior parte dos meus amigos de infância seguiu por esse caminho. Alguns deles não vivem mais. É uma história que gosto de contar. Foram muitas lutas, e hoje posso dizer que vivo tempos de glória.

Você, falando, passa uma imagem de serenidade. Você teve isso na infância ou foi algo que teve que conquistar?
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto: trajetória teve fuga da criminalidade que o cercava (Foto: Marcos Ribolli)
Tive. Isso foi no meu convívio familiar. Essa serenidade vem da minha mãe, que sempre foi meu maior espelho, uma pessoa que tenho como ídolo. Com as dificuldades que vivíamos, minha mãe mostrava muita calma, muita tranquilidade. Imagine você tendo que cuidar de cinco filhos, e seu esposo sai de casa, e você acaba perdendo uma filha que é seu braço direito, uma irmã minha que faleceu bem quando meu pai saiu de casa. Ela teve que sustentar e dar educação aos filhos ao mesmo tempo. E o que eu mais via nela era calma, era serenidade. Isso me contagiava. Meu ambiente depois da escola era praticamente a rua, e o que a rua tem a oferecer é o envolvimento com a criminalidade, fazer coisas que te levam pro caminho errado. Na hora de tomar uma decisão, ali entre amigos que usavam drogas, sempre vinha minha mãe na minha mente. Eu pensava: "Poxa, estou aqui, vou me envolver aqui? Minha mãe está lá do outro lado, trabalhando, tentando tirar nossa família dessa situação". Essa calma que tenho, de analisar a situação, ser sereno, vem da minha mãe.

Permita-me perguntar sobre a morte da sua irmã. O que aconteceu e que impacto teve em você?

O impacto foi muito forte. Minha irmã era o braço direito da minha mãe, ao ajudar no sustento de casa, ao dar educação para nós, porque ela era a irmã mais velha. O falecimento dela foi em uma gravidez, na qual ela teve minha sobrinha, a Meriele. Minha mãe trabalhava, a gente era criança, e ela começou a ter contrações dentro de casa. Ela pediu um táxi, foi para o hospital, e na hora do parto perdeu muito sangue. Conseguiram tirar minha sobrinha, fazer o parto, e depois ela teve uma hemorragia. Ela ainda veio com a Meriele para casa, mas começou a perder muito sangue, e a gente chamou os vizinhos. Eles conseguiram chamar um táxi. Quando ela foi para o hospital, passou por um procedimento, por ter perdido muito sangue. Isso foi à tarde. À noite, recebemos a notícia de que ela tinha falecido. Foi mais ou menos no horário em que minha mãe chegava do trabalho, umas nove da noite. Foi uma notícia que nos chocou muito, uma perda que fez até com que eu desistisse do meu sonho, de ser jogador profissional. Eu estava com 14 para 15 anos e tomei a decisão de chegar para minha mãe e falar que a partir daquele momento eu que seria o braço direito dela. Falei que eu iria em busca de um emprego para ajudar no sustento de casa.

E foi?

Fui por um período. 

Fez o quê?

Fui fazer testes em algumas empresas. Consegui ser aprovado em uma empresa para ser office boy. Fiquei felizão. Depois de dois meses, tinha minha carteira assinada, ticket refeição, vale-transporte, e um salário com o qual podia ajudar minha mãe. Eu tirava um pouquinho para comprar o que era necessário para mim, e o resto entregava para minha mãe. Fiquei bem feliz. Fiquei nesse emprego uns seis meses.

E foi um bom profissional?

Muito bom, poxa! Eu cumpria algumas metas de horário, de fazer meu trabalho, pagar conta em banco, levar encomendas para outras empresas, e havia essas metas que deviam ser cumpridas. E eu, na época, consegui fazer tudo aquilo que me foi requisitado. Aí eu tinha sempre algum benefício. Estava muito empenhado. Se eu desse continuidade, ia subir de cargo na empresa.
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto tem campinho de futebol dentro de casa, em Alphaville (Foto: Marcos Ribolli)
Queria que você contasse a história da Mitsubishi verde. Parece ser algo muito representativo sobre os prazeres e dificuldades que você teria.

(Risos) É verdade. A Mitsubishi era um sonho de garoto. O Dener era um ídolo que eu tinha, e ele teve um problema de renovação de contrato na Portuguesa e disse pro presidente que só renovaria se dessem uma Mitsubishi para ele. Acho que não demorou nem duas semanas, e a Mitsubishi branca já estava lá no estacionamento da Portuguesa. Era um carro que chamava a atenção. Quando fiz meu primeiro contrato, a primeira coisa que fiz foi comprar minha Mitsubishi. Só que ela me trouxe muito trabalho. Era bem a época em que eu estava namorando com minha esposa, a Luciana, e sempre que eu tinha um dia livre, ia na casa dela. Já tinha saído da Vila Ramos, e era onde ela morava ainda. A Portuguesa já tinha colocado minha família na Penha, que era mais perto para ir ao treinamento. Aí lembro que toda vez que eu fazia o caminho até a casa da Luciana, pegava a avenida Imperador, a avenida Arthur Alvim, chegava bem perto da casa dela, eu era parado pela polícia. Chegou um ponto em que não aguentei mais. Falei: "Quer saber, vou unir o útil ao agradável: vender o carro, porque está me dando muita dor de cabeça, e comprar uma casa para minha mãe". Percebi que eu não podia morar no carro. Usei como parte do pagamento da casa da minha mãe.
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto lembra que era parado pela Polícia em sua Mitsubishi branca (Foto: Marcos Ribolli)
É chocante pensar que você era parado pela polícia por ser um jovem negro dirigindo um carro que presumivelmente deveria ser dirigido por brancos.

Isso me trazia uma tristeza enorme. Era julgado pela cor da pele, vivendo em um país onde a maior parte da população vem de raízes africanas. Estamos no século 21 e ainda vemos questões assim aflorarem. Isso traz uma tristeza. São coisas difíceis de serem mudadas, porque estão enraizadas, estão dentro do ser humano. A gente maquia, faz campanha, tenta mudar esse quadro, mas é difícil quando está dentro da pessoa.

Imagino que o sentimento diametralmente oposto a esse seja ter alcançado tanto sucesso na Alemanha, um país europeu, um país branco. Você é adorado lá. É uma referência. Presumo que se orgulhe disso.


Poxa, com certeza. Até porque sei o grau de dificuldade de ser um estrangeiro, ser brasileiro, e conseguir triunfar em um país totalmente diferente do seu. A cultura é diferente, o clima é diferente. Tive minha família praticamente formada lá, meus filhos nasceram lá, e no final de minha trajetória lá, me tornei um cidadão alemão. Parece um sonho que não se tornou real: que eu continuo sonhando. Quando o sonho se torna real, é porque você o realizou. Se você continua sonhando, é aquela sensação de que é maravilhoso, de que é gostoso, de que quer manter. É minha sensação com a Alemanha. Ela me trouxe muito crescimento. E muito crescimento no lado social, crescimento humano, familiar. É um país que com certeza vai ficar para sempre na minha vida.

Teus três filhos nasceram lá?

Sim, todos na Alemanha.

Quem fala alemão melhor? Eles ou você?

Acho que a criança tem maior facilidade em tudo. Eles absorvem o aprendizado. Eles falam melhor que eu, com certeza. Com sete anos, quando começou a alfabetização, a gente os colocou em uma escola americana. Eles falam o alemão, que aprenderam no prezinho, estão sendo alfabetizados no inglês e têm o português, nossa língua. Isso, nessa fase de crescimento e para o futuro deles, não tem preço. Fico lisonjeado de poder dar um futuro promissor a meus filhos, coisa que meus pais não puderam me dar. 

Seus pais estão vivos?

Meu pai é falecido. Já minha mãe, a bichinha está firme até hoje (risos).

Você é casado há quanto tempo?

São 18 para 19 anos. Mas conheço minha esposa desde quando éramos crianças. Estudávamos no mesmo colégio. Minha esposa era amiga de infância do meu irmão mais novo. A Luciana é três anos mais nova que eu. Eles cresceram juntos. Estudávamos no mesmo colégio. Quando eu tinha uns 18 anos, a Luciana com uns 15, eu comecei a ver a Luciana e pensar: "Ih, essa aí, quando crescer, vai dar trabalho".

Ah, já estava de olho, é?

(Risos) Já de olho! E então comecei a cercá-la. Aí tivemos uma amizade, começamos a ter uma proximidade, até que começamos a namorar, noivamos e casamos.

Como foi o pedido de noivado?

Rapaz, foi complicado. Ela estava fazendo cursinho para entrar na faculdade. Comecei a namorar com ela, ir ao cinema, frequentar a casa dela. Na verdade, era ir na frente da casa dela. Primeiro como amigos, mas já com interesse nela. Conversava com a mãe e o pai dela, e eles falavam que a Luciana ia entrar na faculdade e queriam que ela ficasse focada nos estudos. Já devia ser o instinto deles avisando alguma coisa (risos). Diziam que não tinha nada de namoro, de festa. E eu escutando aquilo tudo, balançando a cabeça e dizendo que concordava, que a menina tinha que estar focada mesmo (risos). Mas ao mesmo tempo eu ia maquinando como é que ia chegar pra eles e pedir a mão dela em namoro. Eu tinha horário para estar na frente da casa dela. A mãe dela já começava a gritar: "Luciana, tá na hora de entrar, vem jantar, tomar banho". Eu meio que tive que criar uma estratégia. O primeiro "não" eu tinha dos pais dela. Ela, fui conquistando aos poucos.

Foi preparando o terreno.

Isso. Até que quando a gente começou a namorar, noivamos, nosso casamento foi muito rápido, porque foi quando fui transferido para a Espanha. Eu estava noivo. Para ela ir comigo, os pais só deixavam casando. Eu já estava noivo, então antecipamos o casamento.
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto pretende completar os estudos quando parar de jogar (Foto: Marcos Ribolli)


Você estudou até que série?

Até o primeiro colegial.

Você é claramente uma pessoa esclarecida. Você se comunica muito bem. De onde tira isso? Como se informa?

Eu queria ter terminado meus estudos. Não tive a possibilidade por ir em busca dos meus sonhos. Morava na zona leste, treinava na zona oeste, saía de manhã e voltava só à noite. Com os jogos, não tinha como ir à escola. Mas, quando terminar minha carreira, quero concluir os estudos. Saí novo do Brasil. Morei praticamente 14 anos fora. Isso dá o direito de conhecer novas culturas. Eu sempre li bastante. Gosto de ler muito. Isso me dá possibilidades. Minha mente se abre para outras coisas. E a vida me deu muitas experiências. Com 14, 15 anos, fui morar no alojamento da Portuguesa, porque eu não tinha condições de pagar dois ônibus e um metrô. Ia para casa praticamente só no fim de semana. A vida me deu uma bagagem, e hoje me sinto muito mais preparado para lidar com algumas coisas.

O que você gosta de ler?

Principalmente a Bíblia. Ela tem histórias fantásticas. Aprendo muito com os ensinamentos do Novo Testamento. São histórias que me trazem uma clareza muito grande, de alguns desafios, que fazem com que eu tente sempre tirar um aprendizado e colocar em prática na minha vida, no meu cotidiano. É um livro escrito dois mil anos atrás, mas continua atual.

E você tem um livro, não é?
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto com seu livro (Foto: Marcos Ribolli)
É. É uma biografia. Um alemão, por saber minha história, quis fazer uma biografia, contar um pouco da minha história. O sucesso foi muito grande, porque muitos me conheciam apenas como jogador e começaram a conhecer o Zé Roberto, cidadão brasileiro que saiu da periferia de São Paulo para triunfar na Alemanha. Ele contou esses percalços, esses desafios. O livro acabou levado para a Croácia e para a Polônia. Certa vez, estava na Croácia, e um casal, no hotel, levou o livro para eu assinar. Vi aquelas letras estranhas, virei pro tradutor e perguntei o que estava escrito. E ele falou o nome do livro. O casal falou que o livro estava há uma semana na Croácia e estava sendo um sucesso. Aquele senhor cuidava de uma ONG na Croácia e usava muito o livro para contar a história aos adolescentes, que viviam com os pais separados, que não tinham família. Ele mostrava àqueles jovens que é possível vencer na vida mesmo vivendo uma situação adversa. Fiquei muito emocionado.

Zé, eu estava pensando nas suas andanças e fiquei imaginando que talvez você tenha uma situação privilegiada para analisar nosso país. Você teve uma infância pobre, hoje vive uma vida confortável, morou fora, mas retornou ao Brasil diferentes vezes, em momentos distintos. Você viu o país de dentro e de fora. Que visão você tem sobre o Brasil hoje?

Acho que se a gente for analisar de maneira ampla, de melhoria para a população, de civilização, a gente precisa cortar o mal pela raiz. E o mal a ser cortado é isso que acontece na política. Se entrar nesse assunto, vira um debate, porque são muitas coisas. Mas acho que a maior culpa é de nós, brasileiros, que votamos, que damos o direito de colocar quem vai reger nosso país. Se a gente faz isso de forma errada, quem paga somos nós. Temos o direito de mudar ou de deixar do jeito que está. É uma fase de reflexão, para buscar uma melhoria para a frente ou ficar estagnado em um país sem perspectiva, em que a criminalidade a cada dia cresce mais, em que as pessoas não se preocupam com aprendizado, crescimento, educação. 

Você gosta de política?

Não gosto. Acho que ela ficou banalizada. Claro, é bom você abordar assuntos que interessam a você, mas acabo ficando mais por dentro na época da eleição, na hora de tomar a decisão sobre a quem você vai dar o direito de fazer o melhor pelo país, embora tenham feito mais coisas ruins. Mas política não é muito minha praia, e não tenho muito interesse. Hoje, quando se fala de política, se você perguntar a uma criança de cinco anos o que é, ela vai dizer que é corrupção.

Você votou na última eleição?

Votei, sim. Tentando ter uma esperança de melhoria. Esperava que meu voto pudesse ajudar, elegendo alguém que pudesse melhorar o país. Mas não adiantou muito.

Voto é secreto, mas posso perguntar em que você votou?

(Risos) Prefiro não falar, mas acho que ficou uma dica.
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto acha provável deixar o país quando encerrar a carreira (Foto: Marcos Ribolli)
Você nasceu em São Paulo e agora está de volta à cidade. Gosta de morar aqui?

Gosto. Gosto de São Paulo. Apesar dos pesares, é a cidade onde nasci, onde cresci. É onde lembro de minhas raízes. Por ter ficado muito tempo fora, estou feliz de poder voltar a viver em minha cidade. 

E seguirá nela? Vai envelhecer em São Paulo?

Acho difícil. Quando eu terminar minha carreira como profissional, terei algumas oportunidades em outros segmentos, e minha prioridade será o estudo dos meus filhos. Em se tratando de estudo, de um futuro melhor, acho que temos uma situação precária no Brasil. Vou pensar no melhor para meus filhos. Se hoje tenho a possibilidade de dar um estudo melhor para eles fora do Brasil, é uma possibilidade.

Alemanha?

É a primeira opção. Mas há outras. Vai depender muito da escolha dos meus filhos. 

Zé, o que você faz no seu tempo livre? O que te dá prazer?

Meu tempo livre é isso aqui: ficar em casa, poder usufruir com minha família desse conforto que hoje podemos ter, ficar com meus filhos, minha esposa. Não troco isso por nada. Às vezes, até temos desavenças aqui em casa, porque passo muito tempo fora, e eles querem sair, fazer alguma coisa, enquanto eu quero o contrário: ficar aqui. Acontecem essas desavenças, mas chegamos a um acordo. Vamos a um shopping, a um cinema. Ou ficamos por aqui mesmo. 

Qual teu segundo maior talento?

Vixe. Agora você me pegou. Bicho, eu gosto de jogar tênis. Não que seja um talento, mas é algo que me dá prazer. 

Bota o pessoal a correr?

Acho que eu corro mais do que eles. Gosto de me movimentar, aí acabo correndo mais do que eles.
Zé Roberto Entrevista em sua casa são paulo (Foto: Marcos Ribolli)Zé Roberto gosta de ficar em casa na folga para recuperar o tempo perdido com treinos e viagens (Foto: Marcos Ribolli)
Uma pergunta que talvez seja difícil de responder: qual foi o dia mais feliz da sua vida?

Foi o dia em que fui pai pela primeira vez. Foi em 2000, em Leverkusen, quando nasceu o Endrik. Foi o dia mais feliz da minha vida e, ao mesmo tempo, um dia que me trouxe angústia. Meu maior sonho era vê-lo nascer. Mas a Seleção tinha um jogo na Tailândia, e lembro que no dia anterior minha esposa me ligou e falou que estava com contrações. Não dormi, claro, na angústia de saber se tinha nascido ou se daria tempo de eu chegar e assistir ao parto. Ela passou a noite toda com contração. No dia seguinte, jogamos e já fomos para o aeroporto. E foi uma viagem de 11 horas da Tailândia até Frankfurt. De Frankfurt, tinha que pegar um avião ou um trem-bala para Leverkusen. Eram 96km. Optei pelo trem. Não estava com paciência para avião. Cheguei na cidade desesperado. Estava sem contato para saber se tinha nascido ou não. Quando cheguei na estação de trem e liguei pra ela, o Endrik tinha acabado de nascer. Foi uma felicidade. Eu ali no trem-bala, já chegando na estação para pegar um táxi, foram uns 20 minutos de angústia, de desespero, querendo chegar logo no hospital para ver meu filho, pegá-lo no colo, abraçar minha esposa. Lembro como se fosse hoje.

Quando você ficou sabendo que ele tinha nascido, você estava dentro do trem-bala ainda?

Estava dentro (risos).

Bom, temos um raro caso de um sujeito que foi pai dentro de um trem-bala...

(Risos) Verdade, verdade. Foi um momento de muita angústia que vivi. O trem já é bala, já estava rápido, e eu queria que ficasse ainda mais rápido.

E qual foi o dia mais triste da tua vida?

O mais triste foi o do falecimento da minha irmã. Foi uma tristeza muito grande. Ela era uma das minhas incentivadoras. Na época, quando comecei com esse pensamento de um dia virar jogador, parecia impossível, porque tinha cinco irmãos, minha mãe tinha que trazer o sustento, muitas vezes tinha que pedir emprestado para ter alguma mistura em casa. Às vezes, tinha que tirar a mistura de casa para me dar dinheiro para eu ir treinar. Ao mesmo tempo, minha mãe ficava escutando todos os dias, e meu pai também falava, que deveriam me botar para trabalhar. Poxa, imagina como isso martelava dentro de mim. Eu via esse sonho se tornar mais distante. Porque eu tinha pessoas achando que não iria dar certo. As únicas pessoas que acreditavam eram minha mãe e minha irmã, que às vezes me comprava uma chuteira, um tênis. E hoje, chegando aonde cheguei sem poder tê-la junto, é uma frustração. Não diria frustração: é uma tristeza. Queria poder viver esses momentos de alegria com ela. O dia mais triste, com certeza, foi quando a perdi.

A saída precoce de casa do seu pai é algo que você conseguiu superar? E houve tempo para vocês se reaproximarem antes da morte dele?

Foi acontecendo devagar. Para mim, foi frustrante não ter o apoio do meu pai no momento mais difícil de nossa vida, que foi o falecimento da minha irmã. Ele saiu de casa mais ou menos na mesma época. Eu esperava que ele voltaria para casa para nos dar um suporte, nos ajudar. Nesse momento, não tivemos o apoio dele. Depois, fui para fora, e aí perdemos o contato. Só quando vinha de férias que a gente se encontrava, se via. O contato mais próximo acabou não existindo.
Procuro fazer tudo aquilo que meu pai não fez por mim, de ter uma proximidade, de teu filho não te ver apenas como pai, de haver um elo de amizade"
Zé Roberto
Por mais contraditório que pareça, imagino que a ausência do seu pai tenha te ensinado muito sobre paternidade.

Aprendi muito com minha mãe. Ela fez a parte do pai dentro de casa. Tive muito pouco contato com meu pai. Minha mãe me ensinou isso. Hoje, sendo pai, procuro fazer tudo aquilo que meu pai não fez por mim, de ter uma proximidade, de teu filho não te ver apenas como pai, de haver um elo de amizade. Meu filho, quando posso buscá-lo na escola, sempre quero ir. Embora, nessa idade (15 anos), ele me queira distante. Quando chego para pegá-lo na escola, ele diz: "Pai, fica lá na esquina, pelo amor de Deus. Na frente da escola, não!". 

Mesmo com um pai famoso, é?

É, ele é assim, ao contrário das meninas. As meninas são mais apegadas ao pai. Elas querem que eu vá pegá-las lá dentro da sala. Mas é muito pela idade, adolescente, não quer que os amigos vejam. É da própria idade. Mas procuro fazer tudo aquilo que infelizmente não pude ter de meu pai. Meu filho, quando fizer faculdade, eu já falei: quando ele for para fora, estarei junto dele. Essa proximidade te dá o direito de viver um pouco o cotidiano do teu filho. É algo muito importante hoje em dia. Esse elo tem se perdido. Hoje, infelizmente, as redes sociais tiraram essa proximidade, essa conversa. Aqui em casa, quando a gente senta para jantar, tomar café, almoçar, a primeira coisa que faço é estender a minha mão. Quando meu pai estendia a mão, era para pedir bênção. Hoje, é diferente: estendo a mão e vem primeiro o celular do Endrik, depois da Miriã (11 anos), depois da Isabelli (9 anos). Pego o celular deles e coloco lá do outro lado, daí a gente conversa tranquilo.

Sinal dos tempos, né? E você não usa redes sociais?

Eu mexo. Até porque a gente precisa se atualizar. Em vez de mandar uma carta, hoje você manda um Whatsapp. Mas tem que saber selecionar o período de mexer na rede social, ou acaba sendo prisioneiro. Eu mesmo percebi que muitas coisas que eram prioridades na minha vida eu troquei para ficar mexendo em Instagram, Facebook, Whatsapp. Isso tem que ser secundário na tua vida. Às vezes, acaba tendo uma proporção que pode trazer coisas negativas. É preciso se policiar e ter algum controle na tua casa. Passo meu maior tempo fora de casa. Quando chego em casa, se tá meu filho na sala, minha filha no quarto, e tá um no Whastapp, outro em outra coisa, vamos ter que criar um grupo no Whatsapp, o grupo Família da Silva. Isso não pode acontecer.

E eles não ficam na bronca por você pegar o celular deles?

Ficam! Mas vai fazer o quê? Hoje, eu converso. Antigamente, se eu fizesse algo assim, meu pai e minha mãe me pegavam na espada-de-são-jorge. Sabe o que é? É uma planta que pega no canteiro. Ficava cada marca na perna... Hoje, não: é com diálogo, e com diálogo funciona melhor do que com espada-de-são-jorge.

Bom, Zé, a gente sabe bem o legado que você vai deixar dentro de campo. Mas qual o legado que você gostaria de deixar fora dele? Quando você morrer, como vai querer ser lembrado?

O mais importante não é deixar títulos. Vocês viram ali, tenho meu museu, diversas camisas de clube, troféus, medalhas. São títulos e conquistas. É um memorial. Vai ficar. Mas cheguei a uma conclusão de que a gente conquista, ganha, tem, mas chega um momento em que a fama vai acabar, os títulos vão ficar esquecidos. O mais importante é deixar um legado. O exemplo que tenho é o que disse o Martin Luther King no maior discurso dele, em Washington, em 1963, dizendo que tinha um sonho. I have a dream (inglês). Ich habe einen Traum (alemão). Quando ele falou aquela palavra, era o desejo de que os filhos dele vivessem em um país civilizado para que fossem julgados não pela cor da pele, mas pelo caráter. Passaram-se 40 e tantos anos, e Barack Obama foi o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Ele morreu, mas o sonho dele continuou. Isso é um legado. Eu, se puder deixar um legado na Alemanha, no Sul, na Portuguesa, isso vai falar mais do que títulos, fama ou até mesmo dinheiro.  
Mosaico Zé roberto Reliquias (Foto: Marcos Ribolli)Camisa da Copa de 98 e chuteiras do Mundial de 2006 são algumas das relíquias que Zé guarda (Foto: Marcos Ribolli)

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